Por Francisco Carlos Palomanes Martinho
No dia 25 abril
de 1974, um grupo de jovens militares, capitães na maioria, pôs fim a uma das
mais longas ditaduras da Europa, a do Estado Novo português. Iniciado a partir
de um golpe militar em 1926, transformado em ditadura civil e corporativa no
início da década de 1930, sob a liderança de António Oliveira Salazar, o
governo autoritário conviveu com importantes acontecimentos internacionais
como, a crise do entre-guerras, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e o
gradual declínio dos sistemas coloniais europeus.
O golpe do 25 de
Abril rapidamente se transformou na Revolução dos Cravos, um dos acontecimentos
mais dramáticos do período da Guerra Fria. Foi inesperado também, ocorrendo
praticamente da noite para o dia. Pegas de surpresa, nações poderosas, como os
Estados Unidos, acabaram na constrangedora posição de meros observadores. Como
disse o chefe da delegação da CIA em Londres, Cord Meyer: “Quando a Revolução
aconteceu em Portugal, os Estados Unidos tinham ‘saído para almoçar’. Foi uma
surpresa total”. O processo revolucionário abriu a possibilidade de que, no
chamado “verão quente” de 1975, sob a chefia do general Vasco Gonçalves,
Portugal se aproximasse em demasia do bloco soviético. Para muitos
observadores, havia o perigo real de se transformar em um país comunista.
A queda da
ditadura portuguesa gerou opiniões diversas, tão comuns naqueles anos de
bipolaridade. Por um lado, por exemplo, o senador norte-americano James Buckley
afirmou, preocupado: “Não há nada a acontecer hoje no mundo – nem no Sudeste
Asiático, nem no Oriente Médio – que tenha metade da importância e seja mais
ameaçador que o avanço comunista para o poder em Portugal”. Por outro lado, o
escritor e jornalista Gabriel García Márquez, em visita a Lisboa para cobrir a
revolução para o jornal colombiano Alternativa, não só comparou a capital
portuguesa à Havana de 1959 como também afirmou suas esperanças em um futuro
socialista na pequena república ibérica.
No Brasil, claro,
os acontecimentos portugueses logo ganharam a atenção de governo, intelectuais
e opinião pública. A oposição à ditadura militar festejou como se a vitória
fosse sua. Exilado na Europa, o cineasta Glauber Rocha dirigiu o belo
documentário “As armas e o povo”, enfatizando o olhar popular a respeito
daqueles acontecimentos. O fotógrafo Sebastião Salgado fez uma série de
fotografias tanto da Revolução quanto da guerra civil na África. Mas foi, talvez,
a partir da música de Chico Buarque de Holanda que o Portugal pós-25 de Abril
ficou mais conhecido. A terra lusitana repleta de conservadorismo, tradição e
fé católica se transformou em lugar da esperança e em exemplo a ser seguido. Pelo
menos três canções de Chico se remetem, direta ou indiretamente, ao tema. A
primeira delas, “Fado Tropical”, composta em parceria com Ruy Guerra para a
peça “Calabar: o elogio da traição”, foi escrita antes da queda do salazarismo.
Por ocasião do processo revolucionário, na medida em que Portugal ou se
redemocratizava ou se aproximava do socialismo, dizer que “esta terra ainda vai
cumprir seu ideal/ ainda vai tornar-se um imenso Portugal” soava provocativo
para a ditadura. A canção, assim como a peça, foi proibida. No início da década
de 1980, Chico compôs e gravou “Morena de Angola”, “minha camarada do MPLA”, em
referência ao Movimento Popular de Libertação de Angola, o partido marxista que
havia tomado o poder após a descolonização.
Foi com “Tanto
Mar”, composta intencionalmente em homenagem à Revolução dos Cravos, que o
entusiasmo e a adesão aos acontecimentos portugueses pós-1974 ficaram mais
evidentes. A versão mais conhecida por nós, brasileiros, não é a mais conhecida
entre os portugueses. Composta em plena ditadura militar, sua letra foi logo
censurada. No LP gravado ao vivo com Maria Bethânia em 1975, foi tocada apenas
sua versão instrumental. A primeira versão falava de um país em festa em
contraste com nossa tristeza. “Lá faz primavera, pá/ Cá estou doente”. Mas a
versão que veio a público no Brasil era outra, datada de 1978, e que consta do
disco “Chico”, do mesmo ano. A Revolução havia terminado: “Foi bonita a festa,
pá”. Mas algo dela havia permanecido: “Esqueceram uma semente/ Nalgum canto de
jardim”. Quando Chico pôde finalmente gravar a música, a vertigem
revolucionária já tinha se esvaído, frustrando aqueles que sonhavam com uma radicalização
maior. Para a intelectualidade brasileira de esquerda, o fim do ímpeto
revolucionário teve mais peso do que a conquista da democracia pelos
portugueses. Por isso o evidente sentimento de frustração na segunda versão da
letra: “Já murcharam tua festa, pá”.
O Brasil vivia
sob uma forte ditadura e, para a intelectualidade de esquerda, qualquer derrota
de regimes arbitrários à direita significava um alento. Se a oposição
brasileira se regozijava com a queda do Estado Novo português, era de se
esperar que a postura do governo dos militares fosse oposta. Se não resultasse
em um rompimento definitivo, pelo menos que fossem adotadas medidas de cautela.
Não só em relação a Portugal, mas, sobretudo, em relação às antigas colônias
que gradualmente foram aderindo ao bloco socialista. Apesar do anticomunismo,
apesar das relações amistosas com governos ditatoriais e de direita, como os de
Pinochet no Chile e de Stroessner no Paraguai, para nos restringirmos à América
Latina, o posicionamento brasileiro foi contrário a tudo o que dele se
esperava. Já no dia 27 de abril, o Brasil reconhecia formalmente o novo regime
português, tendo sido o primeiro país a fazê-lo. E ofereceu imediatamente asilo
político ao presidente da República deposto, Américo Tomás, e ao presidente do
Conselho de Ministros, sucessor de Salazar, Marcello Caetano, que veio a
falecer no Brasil seis anos depois.
A questão
de Angola
As razões que
levaram os militares a adotar uma política inesperada têm a ver, sobretudo, com
a chamada questão colonial e com as guerras de independência de Angola,
Moçambique e Guiné, travadas desde o início dos anos 1960. Essas batalhas
contribuíram para a derrocada do regime autoritário em Portugal. Álvaro Lins,
embaixador brasileiro em Lisboa no final da década de 1950, vislumbrava a
possibilidade de o Brasil vir a se tornar o herdeiro natural da influência
portuguesa nos territórios africanos. Segundo suas palavras: “O fato evidente e
incontestável de que seremos, em tais colônias, os herdeiros legítimos e
substitutos naturais de Portugal, em matéria de influência cultural e
intercâmbio comercial, quando se tornarem países independentes”.
O otimismo do
embaixador, entretanto, contrastava com a insistência de Portugal em manter as
colônias do ultramar. No início da guerra anticolonial, o Brasil, junto com o
Vaticano e a Espanha, tentou convencer o governo português a optar por uma
saída negociada para a crise. Portugal recusou. Data desta época uma das mais
conhecidas frases de Salazar: “Estamos cada vez mais orgulhosamente sós”. Mas
os olhos do Brasil e dos brasileiros se mantiveram abertos para a evolução da
política portuguesa.
A esperança de
acompanhar de perto a evolução da redemocratização portuguesa veio ao lado do
desejo de ser parte integrante do processo de transição das antigas colônias
para a independência. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antônio
Francisco Azeredo da Silveira, esforçou-se ao máximo para que o governo
brasileiro tivesse um papel de destaque nas negociações com as colônias. Portugal,
entretanto, apesar da gratidão pelo comportamento brasileiro no imediato pós-25
de Abril, mostrava resistência quanto a um papel de destaque do Brasil nas
negociações pela independência das nações africanas. Para o ministro dos
Negócios Estrangeiros de Portugal, Mário Soares, as negociações deveriam
ocorrer sem a mediação de outros países.
Brasil
desagradando o governo de Lisboa
Insatisfeito, o Brasil não hesitou em tomar atitudes que desagradaram ao
governo de Lisboa. Duas delas merecem destaque: em 16 de julho de 1974, sem
consulta prévia aos portugueses, o Brasil reconhecia a independência da
Guiné-Bissau. Esta atitude, que passava por cima do Tratado de Amizade e
Consulta, causou mal-estar em Lisboa. Para Portugal, tratava-se de uma incursão
indevida visando à superação da hegemonia portuguesa na África. O ministro
Mário Soares exigiu desculpas, mas o Itamaraty considerou injustificada tal
medida. Este foi, provavelmente, o momento de maior tensão nas relações
diplomáticas luso-brasileiras durante o processo revolucionário português. Mesmo
após a opção das novas nações africanas de aderirem ao bloco socialista, o
governo brasileiro continuou decidido a influenciar os destinos daqueles
países. No início de 1975, antes de encerradas as negociações para a
independência de Angola, o Brasil instalou uma representação oficial em Luanda.
Proclamada a independência, em 11 de novembro daquele ano, o governo brasileiro
logo reconheceu o feito de Angola, sendo o primeiro país a fazer isso. A
representação logo se transformou em embaixada. A atitude brasileira de
reconhecer um regime com valores marxistas, como era de se esperar, causou
estranheza no corpo diplomático norte-americano.
Indicado pelo ministro das Relações Exteriores, Antônio Francisco
Azeredo da Silveira, o diplomata Ítalo Zappa chefiava o Departamento de África,
Ásia e Oceania do Itamaraty. De cunho esquerdista, as opiniões de Zappa iam ao
encontro da opção do general Geisel de se afastar do colonialismo português. Esta
postura estava vinculada à possibilidade de o Brasil exercer influência sobre
as jovens nações que se formariam com o fim do sistema colonial.
O Departamento chefiado por Zappa encontrou situações diferentes nos
territórios africanos de língua portuguesa. A Guiné já tinha seu território
reconhecido por um conjunto expressivo de nações desde setembro de 1973. Moçambique
foi reconhecida imediatamente, em função da existência de apenas um partido
político, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), sob a direção de
Samora Machel. Sem maiores traumas, Moçambique teve sua independência
reconhecida em 1975, a partir dos processos de negociação com o governo
revolucionário português.
O problema maior se encontrava em Angola. Na mais rica das colônias
portuguesas, três forças políticas se digladiavam pelo controle do território. A
FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) tinha seu quartel-general no
Zaire, ocupava o nordeste do território e, militarmente, era apoiada pelos
Estados Unidos e pela China. A Unita (União Nacional pela Independência Total
de Angola) tinha sua base militar em Zâmbia e ocupava o planalto central da
colônia. Até maio de 1975, esta organização não dispunha de grandes patrocínios
externos, sendo apoiada secretamente apenas pelo governo português. As maiores
bases do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) situavam-se em
Luanda, tanto na periferia quanto entre suas elites intelectuais. Dirigida pelo
médico e poeta Agostinho Neto, contava com a simpatia dos segmentos
radicalizados das Forças Armadas portuguesas. Sua crescente força militar
decorreu dos apoios soviético e cubano, evidenciando assim a tendência que
seguiria caso viesse a obter a vitória nas armas.
Indicado por Ítalo Zappa, o diplomata Ovídio de Melo foi nomeado chefe
da representação brasileira em Luanda. Sua tarefa consistia em negociar com as
forças em conflito, procurando manter neutralidade. Embora formalmente o
fizesse, Ovídio de Melo pendia para o MPLA. Percebia que a FNLA nada mais era
que uma invenção americana, enquanto que a Unita começava a representar um
conluio de interesses portugueses e sul-africanos. Ao mesmo tempo, afirmava
para o corpo diplomático brasileiro o predomínio do MPLA. Seu comportamento
gerou estranheza na diplomacia americana, que não tardou a pressionar por sua
saída.
No Brasil, a opção de Ovídio de Melo e de nossa diplomacia como um todo
também foi motivo de estranhamento. O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo,
ao mesmo tempo em que se opunha à política externa em relação a Angola, não
deixava de alertar para a possibilidade de constituição de mais um satélite do
Kremlin em território africano. Também dentro das Forças Armadas, o
descontentamento se manifestava na voz do general Sílvio Frota, ministro do
Exército e futuro opositor de Geisel.
A despeito de importantes pressões externas e internas, o Brasil se
manteve irredutível no apoio ao MPLA. É bom lembrar que, além das pressões
citadas, a ditadura militar brasileira era alvo da desconfiança das antigas
colônias, que não se esqueciam do recente apoio do Brasil ao colonialismo
português. À medida que a guerra pelo controle do território se radicalizava,
que os Estados Unidos patrocinavam a unidade da FNLA com a Unita e os
embaixadores de diversos países se retiravam de Angola, o Brasil, com Ovídio de
Melo, permanecia em Luanda. As negociações para a independência angolana se
encerraram, conforme previamente acordado, no dia 10 de novembro de 1975. À
primeira hora do dia 11, o representante brasileiro se apresentou ao novo
governo, antes mesmo de qualquer país do bloco socialista.
A opção do Brasil de permanecer em território angolano evidenciou uma
conduta de autonomia e independência, principalmente em relação aos Estados
Unidos. Naquela difícil conjuntura, ela decorreu do posicionamento político à
esquerda dos embaixadores Ovídio de Melo e Ítalo Zappa, e também do conhecido
antiamericanismo do presidente Geisel. Vale notar, entretanto, que se foi “o
maior feito da diplomacia brasileira nos últimos trinta anos”, ela não garantiu
premiação ou reconhecimento para seus personagens mais importantes: os
embaixadores Ítalo Zappa e Ovídio de Melo. Zappa foi o único de sua categoria
que não recebeu a Ordem do Mérito Militar, além de ter deixado o Itamaraty sem
jamais servir em um país de primeira linha. Ovídio de Melo foi depois
encaminhado para a Tailândia por seis anos, e a seguir para a Jamaica. Foi
promovido a ministro de primeira classe somente em 1985, depois do
restabelecimento da democracia no Brasil.
Esperança de transição para a esquerda, pragmatismo para os militares,
maldição para os diplomatas. A Revolução dos Cravos e a luta pela independência
das colônias foram, embora por motivos diversos, apoiadas por forças
contraditórias no Brasil. Vale perceber, neste breve exemplo histórico, datado
de abril de 1974 a novembro de 1975, que a política é rica em surpresas. Quando
se esperava uma radicalização revolucionária, murchou a festa. Quando se
imaginava um alinhamento brasileiro com os Estados Unidos, a aliança se deu à
esquerda. E quando se podia imaginar o reconhecimento dos artífices da opção brasileira,
veio seu incômodo confinamento em terras distantes. Passados muitos anos desde
o fim da ditadura e do império português, pode-se perceber hoje a importância
das escolhas do governo e da diplomacia do Brasil. Ainda que com a devida
“distância entre intenção e gesto”.
Francisco Carlos Palomanes Martinho é professor do Departamento de História da Uerj e
autor do livro A Bem da Nação: o Sindicalismo Português entre a Tradição e a
Modernidade (1933-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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