sábado, 30 de outubro de 2010

Gol de perneta

Por 28


Já botei a perna pra secar e amanhã irei votar na Dilma por razões óbvias. 

Como pobre, devo ao Lula meu acesso ao que Delfim chama de "bancarização", conforme o comentário imperdível que ele toda semana escreve na carta capital. O crédito popular é um sucesso e só não faço prestação porque não sou de consumir, quase não vejo televisão e a que tenho  é suficiente para o futebol, para o Flamengo, sem necessidade de endividar-me pelo "plasma". 

Também não preciso de geladeira, mas, se precisasse, seria graças ao crédito popular a que poderia ter acesso à água gelada, porque pobre não usa filtro "europa".

Os pobres caminhamos para a classe média. O programa "minha casa, minha vida", para a casa própria. Quem sabe no governo Dilma entro na classe média, de fato, com carro e tudo?

Há pobres cariocas conseguindo comprar seu primeiro gol zero.
 
Quanto ao assistencialismo de que acusam o "bolsa família", é puro preconceito, desejo de continuar vendo o pobre se vendendo como "exército industrial de reserva", de que nos falava o alemão.

Por tudo isso, além do fato de um operário do interior de Pernambuco chegar à presidência da República e fazer o que ele fez, a intuição genial para as medidas lulo-kenesianas frente a uma crise semelhante a de 29, na verdade muito pior, pela escala e números envolvidos. 

É simbólico, o que, de resto, é também estético - o que não é pouco.
 
O único problema são os cabos eleitorais, entre os quais estão esses intelectuais que não medem a mão para permanecer no poder. Parece que resolveram usar contra seus adversários o que sempre foi usado contra a esquerda, a campanha difamatória, a propaganda absurda do comunista comedor de criancinhas e profanador de igrejas. Usam de tudo e vale tudo. Mas, é o tal negócio, "Política é poder", já ensinava o florentino. Além disso, conforme o alemão, " é preciso que uma esfera social particular passe para o crime notório de toda a sociedade, de forma que, emancipando-se dessa esfera, realiza-se a emancipação geral."

Nota do blog: este blog também votará Dilma.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Bem Imaterial ao arrepio de oportunismo


Por Ameríndio Sevilha



O propósito desta rápida  postagem se situa em torno da seguinte pergunta: como podem se articular história e estética?

Eis uma pergunta cuja resposta, igualmente ligeira,  está na base do ethos rubro-negro.

Um  dilema  entre historiadores tradicionais incapazes à arte da bola  e as limitações verificáveis do esteta em ir adiante, avançar sobre um campo não muito típico da obra de arte, como o futebol.

A situação atual é uma proposição a fim de articular o grande aparato historiográfico não especializado do historiador convencional e as dimensões estéticas: formal, social e semântica.
 
A crise da noção de arte, sobretudo devido ao esgotamento das vanguardas combinado com a ascenção da indústria cultural na estetização do cotidiano, levou a uma discussão sobre o estatuto e a função da arte na sociedade contemporânea ("pós-moderna", entre aspas, porque já não tenho mais paciência a tanto mugido)
 
Arthur Danto, Hans Belting e Georges Didi-Huberman são autores de referência e executaram, ao final da década de 80, investigações teóricas sobre o fim da arte, em termos hegelianos.
 
A discussão se abre, ganha amplitude e surge uma anti-noção, uma espécie de arte em termos de fato social que cancela cânones, galerias, museus, a própria materialidade da arte dissolvida numa visualidade absoluta em imagens do cotidiano. 

À título de exemplificação, a despeito do risco de reducionismo, o grafite. Seu estatuto de arte, para alguns na linha dos autores citados acima, a grande arte contemporânea, porque sem suporte, ou com suporte total, muros, paredes, janelas, vidros, sem cânones, "espontânea" e diluída no cotidiano.

Na arte da bola houve a efetivação da proposta. Quaisquer dos cartazes rubro-negros, sobretudo os que se produziram nos primórdios da década de 80, são muito mais do que iconografias. A eles incorporar-se-iam, podemos dizer, a dimensão social da arte. 

De Leandro a Lico, o mundo não era exterior à bola, estava nela, era a Grande Arte, título do romance de Rubem Fonseca ( vascaíno, um hábito de segunda, lamentavelmente, para um escritor de primeira).

São poucas e breves palavras. Algumas citações ao tom erudito que me pediram. 

Creio que não poderia ceder ao oportunismo da data de hoje. Então, pugno-me pela boa-fé, a crer num desejo de se preservar o bem imaterial que é o sentimento rubro-negro.

SRN

Pé na Cova ou Plenkov Silva



Por 28

Pé na Cova, aí em cima, ficava na entrada da favela. Não precisava da pipa no alto. Não gostava de alemão, até por razões afetivas. Filho de puta, russa, polonesa, um país desse aí,  com pracinha da FEB. A cobra fumou bonito e Plenkov Silva virou Pé na Cova.  
Chegava tranquilo, o bujão de gás já reservado, era só botar nas costas e voltar pra casa. Aquela era uma época em que eu bebia direito. 

"E aí play? Burguesinha ou quente?"

Cerveja só no amarelinho, quando era desenhista da Mesbla, ali no Passeio, e pegava minha futura-ex-mulher pra aproveitar o plano Cruzado. 

Foi o que me fodeu, primeiro os dentes. A parada da melitus, sem chance. É melhor mudar de assunto. Tem remédio agora, porque a cabeça também não anda firme. O negócio anda de um jeito que tenho de parar de escrever, olhar pro caderno com o escudo do Flamengo que ganhei da minha filha. Olho pra saber do que estou falando. Esqueço. Como esqueci-me agora mesmo do pronome. Mas e aí?

Pé na Cova. Pé na Cova, ou Plenkov Silva, porque está aqui uma cópia que o Máximo me mandou de um colega seu de faculdade. Colega é sacanagem. O Máximo é o mais velho da UERJ, muito mais veterano do que muito professor e ainda manda uma dessa "colega" da UERJ. Não fode, meu irmão. Uma molecada com idade da Carolina, e aí? Como anda a menina?


O e-mail do moleque é o seguinte:

" Esse anacronismo do 28 se faz não só no presente, mas no passado e no futuro. E não é anacronismo no sentido de ultrapassado é critico, corrosivo, é o anacronismo de quem está a um passo a frente de seu tempo, mas insiste em caminha olhando para trás. É como beijar uma mulher pensando em outra, é tudo muito bom, mas dá aquela dor de não saber para onde ir. O 28 sabe para onde ir, não o vai por que já está lá, ele é aquilo e pronto. Se você perguntar para o 28 onde ele está, vai ouvir a singela resposta "não estou lá". 
Tem até um filme, muito bom por sinal, com esse título, "Não estou lá", que é a cinebiografia do Bob Dylan. Um músico convencional, não poderia ter uma cinebiografia convencional. O diretor coloca 6 atores que supostamente encarnam Dylan em diferentes fazes de sua carreira, mas em momento algum isto está explicito ou explicado (até uma mulher interpreta o suposto Dylan). Acho que o 28 vai para o mesmo caminho. Quem disse que ele precisa ser um? Ele é arquetipos, conceitos, estereótipos, ideologia (acredito que ele só tenha uma mesmo, ele é um romântico à moda antiga). Quem é 28? Quem conhece sabe entender, só não sabe explicar."



Sem sacanagem, Máximo, vai fazer outra coisa. Volta a desenhar profissionalmente, arruma uma barraca na feira de Ipanema pra vender tela, ou então, artesanato, aqui perto, na Sãens Peña. Quando é que você pensaria ou seria capaz de escrever uma coisa dessa a respeito, por exemplo, do Pé na Cova? 

Valeu aí, Renato, mas, eu existo. Não sou personagem, apesar dos aspectos imagéticos. Calcule o que diria se me visse pendurando a perna pra secar da chuva que eu peguei outro dia saindo do boulevard?  

Não me levem a mal, mas tá incômodo aqui pra digitar. 

E os capiaus ontem? Os caras vêm da roça do tietê, atravessam a fronteira, chegam ao Brasil. Time pequeno era melhor chamar de volta o Bangu e pagar o táxi preço fechado.


SRN

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Radial

Para o 28

A casa do Barão de Drummond, depois fábrica confiança, hoje um supermercado, costumava apitar sempre às cinco horas. Há muito o supermercado cancelou o apito. 28, porém, ainda o escuta:

28 – “É isso aí peãozada, trabalha pra mais valia, a mobilidade social existe, em 12 vezes sem juros, com entrada só em janeiro.
   
No terceiro dia, sua filha resolve dar-lhe um banho.

Filha do 28 – “É difícil. Dois dias sem aparecer e olha o estado dele. Começar por onde se não dá sequer pra respirar?”

A amiga que acompanha a filha do 28 não entra no quarto. As mãos em concha no rosto por causa do odor.

28 – “Quem é você, douta manceba? O que ilude sua doçura são os olhos que possuís? Não aproximais demais de  malsã companhia. Quereis comer merda?

28 agora ri, ri como um macaco, faz careta, mostra a língua, coça os culhões, come mais merda.

28 – “Diamante Negro, tá a fim?”

Filha do 28 – “Acho que nós duas sozinhas não conseguimos levá-lo pro banheiro. Quer tentar?”

Amiga – “Insuportável, Ângela. Não dá não.”

A filha do 28 começa a abrir a janela. 28 acerta-lhe um bolo de merda.

Filha do 28 – “Que isso, papai?!”

28 ri como um alucinado. Agora retira a dentadura e a mistura a um novo bolo de merda. Coloca o bolo bem em frente aos olhos.

28 – “Ri agora, filha da puta. Com merda na boca, tu não pode falar, o que dirá cacarejar, como faz toda noite quando eu quero dormir e você fala, fala, fala. Parece aquele vascaíno.
 
Filha do 28  – “Papai...”

28 – “Há vozes. Quem fala?”

Filha do 28 – “Papai...”

28 – “As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti. Como fede essa rosa. Isso é merda. Fala dentadura do caralho. É merda ou não é? Então me responde, direto, sem meias palavras: o futebol é catarse? Controle Social? Todo esporte moderno, de massa, de merda feia e suja como essa  que escremento fétida tem um papel claramente definido. Sua função é manter a coesão social, através da sublimação de irracionalismos e do controle do tempo do não trabalho. A princípio, o futebol brasileiro foi importação de uma elite branca colonizada pra, posteriormente, ser apropriado pelo povo e se transformar no que é hoje: um símbolo da identidade nacional. Um percurso cheio de contradições, dialeticamente construído. Uma vez popular, o futebol deixaria de ser uma concessão, um recurso de controle, e ganharia autonomia. Do que o acusam? Ahn, diga-me douta manceba, aqui macerada nesta residência malsã? Ahn?  quereis dizer-me sem antagonismo pelo odor que repulsa-me da fralda pútrida de aniagem legítima?”

A filha do 28 e a amiga saem do quarto. 28 não percebe

28 – “Possuís cândidos olhos pra ver beleza, aqui ei-la pura: a clareza do raciocínio. Penso simples. Isso é estética. Humor sem cinismo. Pragmatismo sem cooptação. Em pintura, acabar com a tradição corresponde sair dos meios, da linguagem. Abandonar tela, pincel, tintas, linha, plano,cor. Fazer como Duchamp, que apresentou um urinol que não precisava, pra ser feito, de nada daquilo. Retornar aos meios, ainda que sob linguagem radical, é retomar a tradição. Moderno só podia ser destruição. O fim da arte. Adiante que se fizesse outra coisa. Uma fralda de aniagem. Taxas elevadas de diabetes melitus. Pés inchados, cachaceiros molambos...

As duas voltam com um enfermeiro.

Filha do 28 – “Olha só o estado dele...”

Enfermeiro – “Minha senhora, o preço que eu  dei não era pra encarar esse monte de merda. Onde começa o seu pai e termina a merda?”

Filha do 28 – “Tudo bem, moço, faz o que tem de fazer.”

O enfermeiro segura 28, que resiste. Fraco, entretanto, é levado pro banheiro, onde se recusa a ficar em pé. O banho tem de ser dado com 28 sentado dentro do box.

28 – “Já tive mulheres, de todas as cores...”

28 mal começa a cantar, o corpo tomba pra frente, fazendo-o bater com a testa no perfil de alumínio da porta, cortando-lhe a testa.

28 – “Maravilha, vinho tinto. Primeiro as moças, seu merda. Vinho, doutas mancebas? Essa nega quer me dá...”




A clínica geriátrica no Grajaú, após dois meses, atestara sua inépcia e , através do mais melífluo de seus vendedores,retorna a ligação para a filha do 28.

Vendedor – “Como vai a senhora? Espero encontrá-la bem na paz do Senhor. A senhora poderia vir aqui ainda hoje, mas não pode passar de hoje, é possível?

A cama de 28 só fizera aumentar-lhe as lacerações, agora em carne viva. As laterais da cama, em compensando vagabundo cheio de farpas, cortavam os braços e as pernas de 28. Suas fraldas geriátricas também não eram trocadas com frequência. O quarto, abafado, junto com mais três outros idosos, aumentava a temperatura, misturando-lhe suor, merda e sangue. Sob o Alzheimer, 28, num dia qualquer, num de seus momentos de lucidez, conseguiu burlar a vigilância e saiu pelo portão para a rua. Desceu a Itabaiana, alcançou a Teodoro da Silva. Iria atravessá-la com medo, mas o passo firme. Estava com muita fome, cansado daquelas canjas com remédio. Não tinha dinheiro. Só podia ser no restaurante popular no Maracanã. O medo era tanto que virara terror. 28 era ainda mais pútrido do que todos os pútridos que cruzavam a rua. Olhavam-no os olhos vermelhos, as feridas vermelhas, a fralda suja de merda que lhe escorria pelas pernas. 28 necessitava a morrinha de seus pares pútridos, mas livres. Não há fila no restaurante popular. Àquela hora, mais de duas da tarde, os operários esmolambados já haviam almoçado. Para na entrada do restaurante popular, dentro do Maracanã, sem corajem de pedir o favor.

Funcionário – “O que o senhor quer?”

28 permanece em silêncio.

Funcionário – “Está com fome? Não tem 1 real? É isso?”

28 continua em silêncio.

Funcionário – “Pode entrar.”

28 entra, pega a bandeja e é servido. São todos leprosos. O restaurante popular é a divisão social do Estado em que os leprosos foram incorporados em programas de ressocialização.

28 está fraco e quase derruba a bandeja, mas um dos leprosos é mais ágil e consegue ajudá-lo. Leva a bandeja até às mesas.

28 – “Obrigado, mas estou sem um puto.”

O leproso nem sequer responde.

28 encontra várias unhas pela metade na salada. Embaixo do stick de frango, encontra um dedo com pus, já escuro, de podre. Prova. Sente o gosto de torresmo. Decide amassá-lo e misturá-lo ao feijão com arroz.

28 presolve prestar atenção num camarada, na fila, a bandeja na mão, que não para de falar.

Camarada  – “Ontem, pouco antes de dormir, havia pensado sobre o que, de fato, me interessa. Não demorei pra concluir que a revolução não passa de uma experiência estética. Um modo formal de elaborar a realidade, na verdade um meio de tornar a vida mais divertida, passar o tempo. Minha esperança de revolução não passa da vontade de exprimi-la. O resultado é apenas o que se vê. E não pretendo nivelar-me ao trabalhador, aos andrajos, cuja medida de Estado, ao tomarem o poder, será a generalização do churrasco na laje e o piquenique na Quinta.”

28 atira-lhe com raiva a bandeja de plástico. Mas, não o acerta. Acaba acertando um outro leproso, decepando-lhe o resto do toco do braço. Ao mesmo tempo, não se sente bem. Não é medo. Sentira-se seguro ali, em meio aos leprosos. A vontade de vomitar agora é substituída, primeiro pela vontade de defecar, agora um desarranjo que se espalha líquido pelo banco onde está sentado. Alguns estropiados, mais andrajosos, atiram-se com sofreguidão, querem recolher a pasta líquida pra comer depois. 28 escorrega na própria merda, cai, levanta, cai de novo, mas levanta mais uma vez, pronto pra ir pra roleta e chegar à Radial.

Lá fora, 28 olha o Maracanã  e pensa:

"Quando vão reabrir essa merda?"

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Do Inferno para 28


Por Renato Lopes, tributário Kerouak

Qual foi seu Eldorado?
Quantas vezes quis ter tentáculos em vez de mãos ?
O que dá mais prazer: a agulha quente para estourar as bolhas do pés, ou o gol na pelada?
Já sabe o caminho para o seu inferno?
Já se sentiu uma mercadoria?
Você se acha uma ilusão?
É, 28. Você nunca se contentou em ser só o transeunte da galeria de novidades passadas. Não quis olhar só as vitrines. Quebrou todos elas. Deixou tudo solto. Se misturou ao que muitos só se contentam em olhar. Você viveu, vive, do jeito que dá.
Free Jazz. Flamengo, a preta, o samba, a Vila, a bomba, a música, a carcunda do pai. Podia estar em todos os lugares. Em todos os tempos. Tempo e lugar nunca foram problema para você.
O homem que desfere os cem golpes. O absinto da noite do free jazz ficou retido nos seus olhos e nas suas palavras, por isso todos querem cruzar seu olhar, beber nas suas palavras. Se Niemeyer se inspirava na curva das morenas, lá estava você fazendo questão de mostrar por que ele estava certo. Noel aparece até hoje na fumaça lisérgica do ar que te envolve.
Agora é o médico. O joelho rangendo. O caminhar roto. Sair a galeria. Entrar o corredor esverdeado desbotado do Pedro Ernesto. A cadeira de rodas, para quem um dia foi a locomotiva, e fazia questão de que o trilho fosse o fio da navalha.
Se te amputam uma perna? Já sei: o primeiro saci branco. E merece o título. A diabetes, o Alzheimer, são o bom combustível. Mau humor. Que porra nenhuma, senso critico e ácido. Falta de memória? Overdose de lembranças, natural de quem vivia tudo ao mesmo tempo e agora. E não duvido nada que continue vivendo. A lembrança é orgânica. Viva demais para ser deixada de lado.
Se eu como ela por R$20,00, você ainda come por qualquer preço. O saco encrustrou? Não tem problema, mete com ele também, afinal pode ser a única coisa que agora fica duro. Coça? Arde?. O meu um dia também vai arder. Mas vai ser castigo, por ficar com pena, ou ter pensando demais antes de empurrar a pica em uma Tive pena da de R$20,00. Ela valia 100 vezes isso. Foda-se, diria você. Só tenho R$10,00, é pegar ou largar.
O ano? 1981. Tudo na sua vida converge para esse lugar, sim para você é um lugar. O tempo do qual ninguém sai. O ano que não terminou. Seu 1968. Seu espaço. Ali tudo está em você.
A idade transcede. Que beneficio. Que luxo, o único que você provavelmente fez questão. Nem do amor romântico, nem da vida caseira. Para que isso? O dia só tem 24 horas e você roda no 220V. 28 almas? Poucas para você.
Quantos amores? Um só porra. Nem você pode ter mais de uma. Paixões? Mais do que qualquer um pode suportar ou aceitar. Paixão é coisa que incendeia até os cabelos. Você que o diga hein.
Uma estrada. Não, para você mais uma. Vai nela? Claro que vai. Para onde vai? Já me conta? Claro que sim, todos vão saber.Mija no caminho para marcar posição hein o cachorro velho.
Vai, mas fica.
Chegam perguntas do inferno. Todos querem saber de você.
O que digo? Foda-se? Agora não? Espera porra?
Deixa para lá. Eles ainda não estão preparados para você
Ninguém está.
 

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Vazio


Por Renato Lopes

Já algum tempo disse ao Antônio que um dia queria escrever um texto para o Nação. Mas sempre relutei devido ao nível, elevadíssimo por sinal, dos textos postados aqui. E apesar de ser Flamenguista, sou um zero a esquerda quando o assunto é futebol, no sentido histórico, no sentido técnico e no sentido “jogando”. Por isso achei melhor deixar para ler e continuar escrevendo sobre cinema que é mais a minha praia

Mas essa semana não teve como. Antônio pediu “escreve lá”. Ai já era. Vou ter que pensar em alguma coisa. Gostaria de falar de Flamengo, da politicagem que ronda não só o Flamengo, mas do futebol como um todo. Só que lembrei não ter gabarito para isso. Muito menos poesia. Sim, aqui têm-se a critica, a conjuntura, a estrutura e poesia. Então lembrei do episódio mais poético da minha vida, relacionado ao futebol, minha primeira ida ao Maracanã.

Essa primeira ida,aconteceu quando eu já era “burro velho”, tinha por volta dos meus 16 anos. Era um campeonato carioca, não me pergunte qual fase, só sei que jogariam Flamengo e Bangu. Era um final de semana, um sábado se não me engano.Fomos eu, minha irmã, o marido dela na época e mais uns amigos com os filhos menores (crianças com 7 anos já estavam ido ao maracanã). Minha vontade mesmo era ir num dia de grande clássico, Fla-Flu, Flamengo e Vasco, mas por uma questão de receio, nunca me arrisquei a ir, tinha medo de brigas e não gosto de metrô lotado (só encarei metrô lotado em ocasiões especiais duas vezes, No show do Pearl Jam e nos Rolling Stones na praia de Copacabana). Me contentei em ir nesse Flamengo e Bangu. E...que tosqueira. Tinha uma meia dúzia de gatos pingados. Ficamos atrás do gol, eu queria ter ficado na lateral, lá em cima na arquibancada, ficamos na cadeira, no baixo, ainda por cima.

Que decepção. Afinal não era o Maracanã lotado das transmissões, não tinha bandeirão, não tinha a Raça, não tinha fumaça e nem músicas. Não tinha nem graça gritar. Enfim...um típico programa familiar. Mas valeu por ter entrado no Maracanã e visto um gramado de verdade o mais perto que me foi permitido.

As vezes penso que o futebol, independente do time que está jogando, deveria ser um grande evento, não para gerar rendas exorbitantes e nem picos de audiências nos canais que transmitem os jogos. E sim pelo simples fato de ver o estádio cheio, com torcida e o caralho a quatro. Estádio mais ou menos cheio não tem graça nenhuma. E se o jogo é morno, piorou. Não vou entrar aqui no mérito da expectativa que se gera, da mercadoria melhor, onde cada jogo precisa ser uma espiral ascendente, um evento, com o “lado bom e o lado mau”, com os mocinhos e bandidos, com o Pedro Bial fazendo crônica no final. Mas pelo simples fato de ser futebol, da massa, do povo, do negro, do muleque, de gente que gosta por que é o que é. E não está preocupada em atribuir juízos.

Depois dessa ida, fui assistir a um outro, ai já estava com 18 anos...e mesmo assim não foi um jogo de lotar, outra vez pelo Carioca, mas agora contra o Madureira. Mais um final de semana, mas um estádio meia boca, mas um jogo morno. A torcida do Madureira não era maior, mas era mais empolgada que a do Flamengo, que não era pequena nesse dia, mas não era digna de nenhuma foto para se emoldurar. As vezes é engraçado, parece que a torcida só vai para torcer mesmo se é jogo grande. É disso que a mídia gosta. E é assim que eles mostram como supostamente seria o torcedor: o cara que só comparece em clássico ou quando o time está bem na tabela. E quer saber, mesmo em dias de clássico, “jogo grande” por mais que tenha gente torcendo, ainda sim o estádio, e principalmente o campo, parece tão vazio de significado.

Depois disso comecei a despirocar na minha conduta. Fui em lugares que com certeza são tão “perigosos” quanto um Maracanã cheio, mas mesmo assim nunca tive coragem de ir em um grande jogo. Será que estou perdendo alguma coisa?
 

Um dos poucos em preto e branco que não era de segunda

SRN

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Pelo 28

Acabo de chegar da UERJ e encontro embaixo da porta um envelope familiar. O que interessa é contar o milagre, não o nome do santo. Ou da santa, pois deve ter sido difícil tanto tempo, ou mesmo qualquer tempo, junto com 28, Grande Rubro-Negro. Fique tranquila. Vou publicar, sem problema. Sei que ajuda na recuperação ou no que  é possível, melhor dizendo, pois Alzheimer não tem cura. Quem fez o copy fez bem feito.

SRN
Máximo

Pelo 28

“Alguém que mande, que digam o que tem de fazer. É disso que necessitam, acreditem. Porque vocês não são a arte e o outro o filho da puta. Não são a liberdade e o outro a repressão. Seus sonhos não cabem nesse mundo, mesquinho, sórdido, interesseiro. Vestal que são, vocês seriam os únicos puros?”

 Abrem-se as portas do Pedro Ernesto. Cânceres purulentos desfilam em andrajos suas feridas pútridas. Pedaços de dedos, um resto de unha, um testículo podre são restos que se despegam do cortejo humano.  Os pés de 28, em gangrena, ameaçam a amputação e ele pára pra mijar. Mijar no muro da escola Argentina. Sai andando com mijo lento, mas contínuo, como se quisesse derrubar o muro. A urina ocre é ácido no tijolo podre, do emboço velho. 28 pensa em voltar mais vezes e mijar ali todos os dias a mesma quantidade de urina.

De pútrida urina, 28 ainda tem os joelhos bichados, que começam a ranger. O andarilho que é representa uma espécie de fusca velho. Antes do ferro-velho, porém, pode ser útil. Agora mijar na porta do rodízio de massas desvela-se uma obrigação. A morrinha de sua urina ocre, combinada à pasta  de gordura nos latões à porta, à direita - eis um vaso sanitário, inclusive, para defecar,  e só não acompanha os mendigos porque não costuma usar banheiro público. Uma vez - lembra-se - a trouxe ali pra comer, pra depois comê-la, ali. Comida barata. 

Ao entrar na Pereira Nunes, 28 quer mijar agora em frente ao posto da receita. O segurança gordo seria mole, mijaria-lhe inclusive nos cornos, mas 28 agora só consegue mijar, não dá mais pra correr, muito menos sair na porrada. Olha pra porta de vidro. As grades de segurança como se alguém quisesse entrar naquela merda, a menos que fosse pra invadir os computadores e roubar os arquivos dos burgueses de Vila isabel, em seguida, invadir-lhes as contas. Vida que segue. E o negócio é segui-la mijando. Pára num paredão à direita, onde está pintado um painel com as figuras de Noel, Mandela e Maradona. Em qual mijar primeiro? Noel certamente divertir-se-ia, pois não admitia panegírico e revira-se no túmulo como fora constatado em sua exumação recente. Noel que passara a vida de mau hálito, conhecia os abismos, sabia que nada vale à pena, mesmo quando a alma não é pequena como dizia o outro, português. Mijar na cara do Mandela é um bom começo, naquela mansuetude bovina. O CNA foi cooptado - é o que dizem. Foda-se. Mija e foda-se. E 28 agora mija com a mão encostada ao muro por causa dos joelhos. Tira um halls do bolso e joga no chão, pra mijar por cima que o odor é tão forte que nem ele mesmo aguenta. Mija mentolado.

A urina, o andarilho e a imprensa. Tudo é fluxo: o andarilho pelo concreto das ruas, dos prédios, das casas, o jornal pra embrulhar duzentos gramas diários de ração pra cachorro e a urina é o que 28 usa pra mijar agora na tradição, cujo modelo persiste por atualização ocre, meio sanguinolenta, com laivos de pus. 28 não olha pra baixo quando mija. Um hidrante, que nunca mais havia visto, de repente aparece na esquina. Parece sua vizinha. A que mora nos fundos e que toda vez que a vê, tem a impressão de que não tem pés, mas rodas de rolimã carregando um hidrante sujo, descascado, inútil. O hidrante tem língua, mas de utilidade semelhante a de um lp. Quando bota pra tocar, a agulha espeta o grunhido roufenho. Um dia pensa em mijar-lhe na calvíce que se anuncia. Porque o hidrante já perdeu a peça que lhe cobre o topo, expondo um mau cheiro similar ao do mijo que 28 mija. Não lhe fazem manutenção e o que resta é o espaço que ocupa. 28, ao vê-lo, tal como faz com a vizinha, apressa a mijada pra sair mais rápido. Porque no hidrante público  ainda pode mijar, mas na vizinha  apenas pode rezar, reza forte que a mande pro caralho com suas histórias de vaso sanitário. 28 tem urina ocre, mas costuma limpar os ouvidos

Com  chuva, até caveira de burro aparece na rua do rio. 28 estava atravessando a Teodoro pra passar pra Negrão de Lima quando o 433 dá-lhe uma porrada, jogando-o contra a bomba de gasolina do posto. Aí fica difícil, não se podia identificar com precisão o que era o  28, merda de esgoto arrastado pela chuva, cacos da caveira de burro navegando no rio que transbordou, gasolina e urina. Além de mijado, 28 estava fodido. Como havia feito fimose e porque mijar era o seu negócio, 28 e o posto haviam se transformado numa uretra pública. Suspeitava que teria de usar fraldas, daqueles de velho, pra não pingar.

Fralda geriátrica custa caro. Sem dinheiro, 28 arrasta-se, desde o acidente, vagarosa, mas obstinadamente, ao açougue do extra-boulevard. Todos os dias, pela manhã. Lá ganha de favor sacos de aniagem, que costura em casa com nylon, improvisando uma ridícula, mas eficiente fralda. Acostumou-se à nova aparência: a camisa do Flamengo, campeão de 81, campeão do mundo, campeão de tudo, que resultara da coleção dos selos do Lance, sobre a fralda colada com fita crepe que lhe dá um certo ar de Ghandi, ao contrário de Jesus Cristo, que lhe pareceria melhor, ao encontro da barba e do cabelo que deixara crescer.

Um arranjo diário de grande esforço, cuja carpintaria acaba impondo sacrifícios. O principal dos quais é a preguiça de tomar banho. Até soltar todas os adesivos, desdobrar o saco de aniagem, fora a dor do caralho. Porque 28, além dos pés inchados, os joelhos bichados, agora tem uma bacia de platina de segunda arranjada por trocados em rateio pelo bairro. Assim, predomina a preguiça. E não é incomum passar perto dele e sentir-lhe a morrinha. É merda. De fato, 28 defeca na fralda e não se limpa.

Outro dia foi possível vê-lo atravessando novamente a Teodoro, naquele mesmo trecho onde se fodeu. Observou-se que parou, ajeitou um pedaço da fralda, olhando fixo, distante, pro prédio da esquina com a Pereira Nunes. 28 depois contou que se lembrava do terreno que havia ali, cercado por um muro, sobre o qual saltava, limpava o mato, estendia papelão de uma caixa que pegava no armazém do seu Lopes, da esquina da Gonzaga. Era o seu motel. Comera ali, buceta e rabo da Judicéia. 28 contou isso ainda com a mão suja da punheta que acabara de tocar.

28 não gosta de teatro. Perdeu a paciência com cinema, com literatura. Permanece gostando de buceta e futebol. Também se meteu com textos acadêmicos.

Os pés inchados, que não vêm mais da cachaça, e foder fode é a paciência dos outros, por isso lê, mas é burro. Lê 10, não entende 8, esquece uma e a que restou fica nas coxas.

Ganhou uns trocados vendendo a televisão e pôde substituir alguns dias a fralda de aniagem. Comprou um pacote de descartáveis e a assadura  diminuiu. Melhorou até o vermelhão da virilha. Coçava os culhões com conforto, na Lapa lotada pro teatro de rua. Já saíra prevenido, o algodão nos ouvidos e não ouviria aquela gritaria de retardado alegre que sempre lhe parece vir de atores, seja de rua, de palco, de qualquer dessas merdas."

domingo, 17 de outubro de 2010

"Fale ao motorista somente o indispensável."



Enquanto o Serra esconde o Fernando Henrique e  diz aquilo que quer ser, vem agora o Pelé confirmando o que sempre foi. 

Ambos deveriam pegar o 433, aqui na Teodoro da Silva, e, antes de passar pela roleta, ler o que está escrito:

"Fale ao motorista somente o indispensável".

O problema do Pelé, sem prejuízo do humor de que se ressente, é a seriedade de sucrilhos. Pelé me lembra o Capitão Asa, na Tv Tupi, recomendando a cartilha do bom garoto. Na verdade, não precisa ser o Edson sempre que abre a boca e, de novo, atacar o Maradona. Dizer que o argentino não é bom exemplo pra juventude, porque dava  um teco ou  gostava de doce, no tom característico de quem revela a ignorância não admitida pra quem é do esporte e tem de saber dos problemas da chamada adicção, do questão de saúde pública de que se reveste o problema. 

De resto, o que esperar do autor do clássico "o brasileiro não sabe votar". Ou  o que é tão ruim, mas pouco conhecido, como por exemplo em1972:

"E os pobres brasileiros, Pelé?"

"É a vontade de Deus. Deus fez os pobres. Da mesma forma como quis que eu existisse pra dar alegria a eles."

"Fale sobre a ditadura no Brasil."

"Não temos ditadura. Nosso Presidente Médici é amado pelo povo brasileiro por fazer o bem para o Brasil."

SRN

3 x 0: Chê era o Guevara

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O Flamengo me salvou

Por Guilherme Camerino Magro

A madrugada não estava firme, a chuva ameaçava. Enquanto aguardava minha namorada que chegaria de Brasília, resolvera sair do Santos Dumont e dar umas voltas pela Praça XV, pelo Paço, olhar a história material, observar a estética em sua gradação carioca. 

"Vai que eu fico."

Paro, olho em volta, agora que a chuva fina se insinuava. O atavismo da área me atraía. Era o que provavelmente  fizera-me ouvir, novamente repetidas, aquelas palavras que pareciam uma fantasmagoria.

"Vai que eu fico."

Atravesso a Primeiro de Março, em frente à caixa de vidro da Cândido, caricatura  bauhausiana, onde moradores de rua tentam se abrigar sob caixas de papelão recolhidas nas lojas da cidade, lá na Uruguaiana, perto da Presidente vargas. Em meio à confusão dos grafites e dos panfletos colados à parede da igreja, assim que se atravessa a rua, observo um cartaz em polonês do filme “O Poderoso Chefão”. Não leio polonês, mas há uma identificação grafitada com uma seta. A face de Marlon Brando é uma composição gráfica soturna, quase diabólica. A chuva aperta, uma cortina  espessa turva os moradores de rua, a própria rua, o prédio da Cândido.

Do cartaz escorre sangue. São os olhos de Brando duas postas vermelhas, sem matiz, sem piedade, sem racionalidade. Neles residem a besta-fera, o mal puro que precisa ser usado.

Começo a ver os ossos se multiplicarem, o vinho soturno em sangue dos moradores de rua despedaçados, estripados pela força avassaladora. O vazio cinza, sob luz baça, é preenchido por gritos de desespero.

O horror tem método.

Os crânios são os últimos a serem decepados, abertos, expostos.

Velho e aleijado, um deles arrasta-se e arrasta-se e arrasta-se.  A besta parece se divertir, perseguindo-o aos pedaços. Primeiro o calcanhar, em seguida os dois pés e o velho é amputado à altura da coluna.

Vários objetos misturam-se aos restos do velho, cobrem a poça de sangue, acumulada pela chuva, alcançam-me parado junto ao meio-fio. Pedaços de madeira, latas de leite condensado, pequenas, cascos de cerveja, latas de refrigerante, plásticos de cachaça barata, um pedaço de fêmur, fígado podre, rins.

Acompanho a chuva ser sugada pela besta de volta ao cartaz na parede. O cartaz também desaparece. 

A madrugava anunciava o som da morte, mas abstraía-se, livrava-me a cara, que não tive tempo de sentir medo. As sílabas sibilantes, escorrendo pela parede, pela caixa de vidro, pelo meio-fio, iam agudas como signos e, da escuridão, cobriam os cadáveres, seus restos espalhados. Uma composição de sangue e asfalto apresentava aquelas palavras e convencia-me tratar-se do demônio, que parecia cortar a parede do prédio e imprimir, de fato, a informação nova.

“A morte é um vinho.”

Havia me  esquecido de Ângela, que já deveria ter chegado.

Como não uso relógio e porque não costumo seguir-lhe o tempo, decido que não iria preocupar-me.

Mas, não podia ficar ali parado, vendo as ratazanas saindo dos bueiros, misturando-se aos detritos e aos pedaços humanos resultantes da ação que presenciara e que ainda não conseguia explicar. 

Lembro-me do risco que corro e esperar juntar gente e polícia, como logo ocorreria, o que iria dizer? Aqueles cadáveres aos pedaços. Como explicar que o demônio saiu dos olhos de um ator de um cartaz de cinema preso à parede e escrito em polonês?

Chuto uma ratazana que vinha de encontro ao meu tênis sujo de sangue. Meu gesto aguça a sanha das demais que  atacam. Saio fora batido, atravesso de volta pro Paço,  continuo correndo sem olhar pra trás até chegar no recuo do Santos Dumont. 

Diria pra Ângela que me atrasara devido a uma encomenda, que tivera de pintar até agora há pouco e não houvera tempo de trocar de roupa, por isso, o vermelho da tinta acrílica.
Em frente ao desembarque A,  já vislumbrara a irritação de Ângela. Pequena, praticamente do mesmo tamanho da mala de rodinhas.

“Francamente, é a última vez. Não venho mais aqui.“

“Nem um beijinho?”

Ângela já se dirigia para a fila do taxi.

Recuso o preço fechado, quero pelo taxímetro, decido que iremos de ônibus e não é preciso muito pra convencer Ângela. Andar até o ponto do 232, dentro do mergulhão, além do alívio, permitiria-me   pensar no que ocorreu, buscar algum sentido. Acompanhara o Alzheimer de minha mãe,  agora ao que parece também do nosso companheiro 28, informara-me, Ângela, aliás,  fora muito útil descobrindo em Brasília uma unidade na UNB especializada no tratamento da doença. Portanto, se não havia uma determinação etária, embora muito mais comum em velhos, só podia ser alguma memória recidiva, irrompendo do inconsciente, em sua primeira manifestação patológica.

“Só pode ser isso – pensava, já dentro do ônibus – meu pai era legista, devo ter visto muita estripação de  quando criança e não me lembro. Ou do que não me lembro aparece agora que estou ficando maluco. Peraí, também pode ser isso. Loucura ou Alzheimer?”

“Passou a raiva?”

Ângela vira o rosto com desprezo, encara-me, faz uma careta e volta a olhar através da janela. Tem mais interesse no Maracanã, que aparece a sua frente, quando da curva pela Radial.

"Depois eu lhe conto o que Flamengo fez aí. E fez por mim".

Já vou terminar companheiros. 

5 anos e 3 meses limpo, sem usar nada que altere-me o estado de consciência. 

Só por hoje e Saudações Rubro-Negras.






domingo, 10 de outubro de 2010

Domingo, dia de visita

28 é um amigo. E amigos podem ficar anos, décadas sem se ver. Reencontrei-o há oito anos, quando retornei a Vila Isabel. Estava na esquina, caído. Diabetes, não estava chapado. Agora a combinação terrível com o Alzheimer. Fiz algumas alterações no que me contaram, preservando os nomes. 
Domingo,  dia de visita, Grande Rubro-Negro.

SRN
Máximo


Hospital da Lagoa

28 – O que ilude meu peso é a barriga. Mas, eu estou mais leve. Boa parte foi jogada fora com a perna. Mas, o pior é que ainda coça.

28 larga a muleta, sai pulando pelo quarto com uma perna só. Alcança a janela.

28 – Que maravilha a Lagoa. Vou te dizer: morrer dentro de uma obra-de-arte, feita pelo homem, perto de uma outra obra-de-arte, feita por Deus,  é um privilégio.

Negra Linda estranha. Mas, 28 agora fala em Deus.

28 – Vem até aqui com esse burro largo que Deus te deu, encosta aqui.

Negra Linda vai até lá. 28 encosta-lhe o pau, ambos na janela.

28 – Tá sentindo a presença de Deus?

Negra Linda ri.

Negra Linda – trouxe as tintas e os pincéis que me pediu.

28 – Você é uma delícia. Quando voltar na semana que vem, verá este quarto transformado numa tela. Vou morar dentro de uma pintura. Aliás, vou morrer dentro de uma pintura, ainda que pulando numa perna só.

Negra – Tenho de ir , tá? Dei uma fugida rápida. Deixei as crianças com a vizinha. Se cuida, tá.

28 a acompanha, pulando, até à porta do quarto. Na volta, se joga sobre a cama do lado, vazia desde a morte do caboclo na cirurgia de ontem à noite.
28 começa a chorar.  Aos trancos, como se o torax estivesse pra ser arrancado.

28 agora se joga de cabeça no chão. Bate com a testa. Apaga.

O trecho abaixo deve ter sido escrito logo após 28 ter recobrado os sentidos. Quem me deu pediu que o reproduzisse:

28 - Não posso precisar o tempo, uma vez que acabei dormindo. Não, não me refiro ao tempo cronológico, algumas horas, talvez minutos, como os que passara no portão, com Judicéia ao meu colo; mas ao da memória, que, não passando de pálida cópia, fornece pedaços que se selecionam e, à revelia, crescem, fixando-se com nitidez. Sobre eles não atuam o tempo, nem venho pensando, falando, pintando, pulando numa perna só,  com objetivos logicamente descritivos, simplesmente deixando o material fluir, Não é o caso de bancar Deus. Pois, entre mim e Ele ocorreu um tipo de conformação, de maneira que do tempo cronológico e da emulação de nossa convivência ficou um Deus para o inevitável e um 28 modificado até na minha própria linguagem. Quando penso percebo que as palavras surgem compulsivas, querem ser faladas, mas não desperdiçadas, não convindo forçá-las, obrigando-as ao que não pretendem dizer. Deus  tinha estilo? Eis o que perguntava Picasso.  Convivo na sua casa, participei de brigas, comi da sua comida, comi das suas mulheres – bloqueava a aproximação vindo a reserva em que se trancava.
Acho que sonhei. Um sonho projetado pelos irmãos maristas. No filme opaco que me passam, aparece um garoto; indico-lhe que se cale, evitando a advertência. Ele evita, quieto no auditório, assistindo ao filme sobre a história de um outro garoto, cujo sonho é crescer para sangrar no próprio corpo as chagas do Cristo crucificado. O sangue do filho do Deus da infância. Um Deus de potentados, ínvio e isagógico, para que hierarcas tenham o poder incontrolado sobre o homem tornado manipulável. Um Deus interdito, intolerante a contradições de quantos dele se aproximam dentro da amplidão da vinculante notícia do Cristo. Um Deus de profissionais da fé chapada, antes que o “o Senhor conheça o raciocínio dos sábios, porque sabe que são vãos”. Isso é Saulo falando línguas, “as dos homens e as dos anjos”, conhecendo o próprio inferno, atravessando a sua Damasco e se vendo “no espelho e de maneira confusa, para, depois, face a face”, tornar-se Paulo – o apóstolo definitivo.
Não sei se o meu pau endureceu porque a Judicéia se insinuou no sonho, perguntando: “28, da Vila de Noel?” Mas valeu, pois acordei com o pau na mão e levantei disposto a enterrá-lo novamente naquela forca celeste. Da porta do quarto, vi que Judicéia ressonava, lambida pelo vento que vazava pela janela.
A noite piorara o frio.
No reflexo do vidro canelado, entre os arabescos da guarnição, vejo os meus cornos vindo da mangueira, passando pelo elevado do poço, até chegar à porta-de-ferro da oficina, estava largado numa cadeira de praia, meio deitado, meio sentado, de lado, a cabeça caída como um pêndulo sobre o peito sujo; debaixo da bermuda preta, tornada baça pela iluminação da oficina, escorria um líquido que cheirava à caçhaça; ralados de sangue cobriam os joelhos; os tênis brancos vagabundos, imundos, tinham os lados de fora da sola desgastados à quarenta e cinco gráus, como se cortados. Cortado também me parecia o meu rosto, cortado não literalmente, mas por recurso de expressão cubista, do tipo das esculturas que fazia, pela cabeleira grande, igualmente suja, que se embolava sobre os óculos imensos, quadrados, de hastes presas ao aro por durepoxi.
Não procurei ajudá-lo. Nessas horas sei bem qual a hora, o dedo na garganta, o corpo no azulejo, o chuveiro frio, depois água, muita água para a sede de caixa-d’água. E aquela não era a hora.
Agora ouvir Maria Rita, na sua sensualidade sem intenção, que me fascina. Pintar essas paredes, as mesmas coisas, repetidas, repetidas, bate-estaca.
Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e Lico