Por Máximo
"A polêmica veio à tona após a publicação de uma reportagem feita pelo diário Mediapart. A matéria revelou a existência de um suposto plano para estabelecer sistema de cotas nos centros de treinamentos de categorias de base da França. Haveria um limite de 30% para jogadores negros ou de origem árabe.
O projeto previa mudanças nos critérios de convocação para as seleções de base da França e afetaria jogadores a partir dos 12 anos. Segundo o Mediapart, Blanc teria defendido a ideia ao comparar a situação francesa com a espanhola. “Os espanhóis dizem: ‘nós, não temos problemas. Não temos negros”, teria dito. O treinador negou as acusações."
Transcrevi os fragmentos acima da matéria "Ministério do Esporte da França livra Blanc de acusação de racismo", publicada em 10/05/2011 no sítio do uol, www.esporte.uol.com.br.
Talvez seja útil saber o que pensa um outro francês, que nunca jogou bola, mas, que certamente é muito melhor do que ex-zagueiro francês: o historiador Jacques Revel em fragmento de entrevista concedida ao falecido historiador Manuel Guimarães Salgado.
SRN
Jacques Revel
Bem, os historiadores têm, em todos os países, um papel na construção e legitimação da Nação. É um fato para países mais antigos como a França e para países mais recentes como o Brasil. No começo os historiadores estavam encarregados de dar forma a uma memória, que poderia ser ritual, oral, dando-lhe certificado de ciência. Poderíamos dizer que, pelo menos a partir do século XIX, os historiadores transformaram a memória em história, como fizeram Ranke para o caso da Alemanha, Michelet, Quinet, Taine e tantos outros para o caso da França. Praticamente em todos os países do mundo tratava-se de fabricar algo que pudesse ser ao mesmo tempo útil para a coletividade e perfeitamente de acordo com os critérios de neutralidade e objetividade do trabalho científico. Este era o sonho da corporação dos historiadores de ofício. De alguma maneira isto funcionou, aliás um pouco para além do que deveria. Chega então um momento quando isto não mais funcionou, e não funcionou por diversas razões. A História, que havia sido até a década de 1930, principalmente na França, uma pedagogia da Nação, transforma-se numa pedagogia do social, o que é algo de bastante diferente. Isto significa dizer que os alunos das escolas e liceus franceses passaram a aprender menos a biografia da França e mais sobre o que seria uma classe social, uma crise ou um conflito religioso.
Uma segunda razão para a mudança estava no fato de que o que chamaríamos uma História da França não tinha mais a mesma eficácia, perdera a sua força e a sua evidência em função de novas demandas da sociedade. E o que demanda a sociedade? Uma série de coisas. Em primeiro lugar a sociedade transformou-se ela mesma, tendo se tornado multicultural. Esta não é uma palavra que aprecie especialmente, porque acho que não explica muito. Em suma o que quero dizer é que entre os anos 1900-1950, os franceses podiam falar em suas colônias na África ou na Indochina a respeito dos gauleses como ancestrais comuns. Isto se tornou impossível na França e mesmo se pensarmos no caso da periferia de Paris. Isto porque ninguém mais acredita, também porque a sociedade francesa é hoje constituída por cerca de quatro milhões de magrebinos muçulmanos, de um a um milhão e meio de turcos, africanos e portugueses. Isto não é, entretanto, uma novidade: no fim do século XIX a França conheceu um forte movimento imigratório de populações vindas da Espanha, Itália e da Polônia. Este movimento parecia incomodar muito pouco uma vez que havia um modelo distinto, de forte integração cultural. Este modelo era o da cidadania francesa inventada pela Revolução Francesa. E o que dizia este modelo? Ele propunha um esquecimento do passado destas populações em troca de uma integração como franceses de forma integral. Não havia lugar, segundo este modelo, para se pensar nos termos de “afro-american ” ou “jewish-american ”. Na França era-se polonês, israelita (não se usava o termo judeu) no espaço privado, publicamente era-se francês. Com isto operava-se uma eliminação de todas as marcas de origem em nome de um modelo universal de cidadania. Hoje isto acabou, não funciona mais e o que vemos é menos uma valorização dos particularismos e mais uma valorização de sentimentos identitários. As pessoas hoje querem ser identificadas como judeu e francês, francês e magrebino, francês e africano, etc. Mesmo para o caso da sociedade francesa tradicional assiste-se a uma reivindicação de pertencimento a diferentes formas de identidade, que não apenas aquela representada pelo centro. Estas identidades podem ser regionais, de gênero, sociais, etc. Esta multiplicação de lugares de identidade trouxe consigo uma enorme onda de memória. E isto é novo: assistimos há pelo menos 20 ou 25 anos a uma erupção de memória, que em certa medida é uma memória contra a História, uma memória identitária particularista, que num certo sentido coloca uma série de problemas. Ela existe, não é nem boa nem ruim. A questão é de sabermos que História podemos fazer com ela. O que é certo, é que os modos canônicos de fazer a História da França, modos por sinal bastante antigos, acabaram provisoriamente.
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