terça-feira, 17 de maio de 2011

Verniz conveniente da falácia do mérito: todo craque é consagrado no futebol, grande parte dos jogadores negros é craque, logo, todo craque negro se consagra. O silogismo é, como se vê, um instrumento de análise, uma hipótese dedutiva anti-racista. E estamos salvos.

Por 28



Máximo, seguinte: 

"Tem dias que eu fico pensando na vida e sinceramente não vejo saída".

Não dá pra ouvir nem posso enviar-lhe o Vinícius que escuto, porque este computador está com problemas para anexar arquivos. Também anda com problemas na placa de som e ficou mudo. Mas, o pior não é isso. É que escuto em fita cassete, num gravador da telefunken que ganhei há 25 anos, naquele troço de mau gosto que é botar lista de presente de casamento em loja de shopping. Precisa limpar, é verdade, m
as, se puder, procura aí essa música que a mãe da minha filha me deu e escuta no computador enquanto lê o que acabei de escrever.   

Achei que deveria, agora que a taxa cedeu e o raciocínio está claro e o pé desinchou, me permitindo ficar sentado aqui digitando este e-mail. Deveria, porque, na quarta, quando nos encontramos na 28, ao voltar do Maracanã do jogo contra os amarelos, não o tratei com a devida consideração de um irmão velho de rua. Além disso, sempre é bom não confundir pragmatismo com materialismo. Este é atuar pra mudar a realidade, tal como ela é (não do jeito que quer um anacronismo como o que irei me referir adiante) ; aquele simplesmente significa se dar bem dentro das regras do jogo, sem fazer nada para alterá-las. É o tal negócio: justamente a diferença entre ser Rubro-Negro e o resto, fauna, amarelos, de segunda, um e noventa e nove.

Lembra-se? Mandei este e-mail mais ou menos em julho do ano passado. Acrescentei agora um pedaço do Fontana, marxista ranzinza, tão ranzinza como eu que não sou marxista.
 
A questão do racismo presta-se ao que há de pior, com argumentos que vão da esquerda à direita, num daqueles sofismas que o João Saldanha, mestre da síntese, usava contra o excesso de mágica que particularmente o irritava no futebol:

"Se macumba ganhasse jogo, campeonato baiano terminava empatado."

O argumento de direita só não se desmoraliza por causa do cinismo, bem lustrada com o verniz sempre conveniente da falácia do mérito. Todo craque é consagrado no futebol, grande parte dos jogadores negros é craque, logo, todo craque negro se consagra. O silogismo é, como se vê, um instrumento de análise, uma hipótese dedutiva anti-racista. E estamos salvos.

Há também outras possibilidade de "salvação".

Uma esquerda errada, equivocada de século, rejeitando a questão étnica, considerada um entrave à luta maior, a grande luta, a luta de classes.
A conexão com aspecto interessante levantada por Fontana sobre o eurocentrismo de Marx (Marx, de resto, não poderia ser senão filho do seu tempo, apesar das tentativas de canonizá-lo) e da afinidade com a escola escocesa segundo à qual haveria uma linha evolutiva histórica que culminaria "no capitalismo, na industrialização, na ciência moderna." Marx chegou a escrever, a propósito da dominação inglesa na Índia, da necessidade da brutalidade do capitalismo para fazer acordar os "povos sem história"
 
Conhecemos, porém, o "fim dos centros', e a condição pós-moderna não pode servir apenas aos "fashion week".

O argumento, igualmente falacioso, sustenta que uma classe média negra representaria cooptação e retiraria da luta contingente expressivo indispensável ao combate ao sistema.

Uma vez pequeno-burgueses, seríamos negros reproduzindo a crença na ascenção social, alienados pelo mundo da mercadoria e instados ao engodo do individualismo empreendedor que já não nos pode mais "salvar". Esquece-se  da força da fantasmagoria e contrapõe um combate ingênuo, historicamente superado.

Moído como mercadoria, não ilude agora a propaganda de um negro de shopping.
Certamente não se acredita que basta subir no ônibus para se ter garantido o lugar na janelinha. Como disse o próprio Romário. De fato, Pelé, Romário, alguns mais, "salvaram-se", entrando pela janela de um sistema que necessita lazer e admite, por isso, concessões. Durante muitos anos, Grande Otelo também divertiu no cinema e na televisão.
À cooptação   reputa-se uma sofisticação que subestima a inteligência. O fetiche embalado em propaganda anda usado contra o próprio feiticeiro. Aproveita-se a chorumela da pós-modernidade que se apresenta em contradições que não precisam ser resolvidas. Permanecem empilhadas como fragmentos ecumênicos. Na síntese dialética existe um sentido unívoco, teleológico, a que tudo vincula, exatamente o que o pós-modernismo, pulverizado, não é.

Aí, meu irmão, a fraqueza desse troço: a pós-modernidade pulveriza as formas de exploração, cancelando o cartum clássico (você que é desenhista sabe disso melhor do que eu) do operário de macacão e ferramenta, de um lado, e do outro, o burguês gordo, de terno e gravata, a maleta na mão estufada de dinheiro.

 
A vida, porém, segue como mercadoria, pós-moderna ou não, circulante, comprada, vendida. 
A ironia do vale-tudo pós moderno é porque, em última análise, permanece conservadora. E  aqui a sua utilidade. Dialeticamente:
 
Na fragmentação pulverizadora, cabe encaixar o específico como uma forma de luta sem cancelar a luta de classes, de que o pós-moderno, conservador, se esquece cinicamente sob o argumento do mérito.
 
O esforço de nos esclarecer expondo a luta maior, a luta de classes, da qual as demais são consequências, é o erro do argumento. Enquanto a revolução não vem, os vasos sanitários, as caixas de supermercado, a banqueta de trocador de ônibus, o caminhão pra descarregar tijolo e areia são educativos e formam a têmpera em antinomia ao que o branco perdeu, envilecido pela proximidade do patrão. 

O ar condicionado em que vive metido o dentista, ironicamente também vestido de branco, impede o suor que o Maguila e o Tysson, lá embaixo, no hall dos elevadores, na entrada do shopping, vertem vestidos de preto não só pra garantir a segurança, mas também para o próprio trabalho revolucionário.

SRN

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