sexta-feira, 1 de julho de 2011

A Rua Lanceta

Por Máximo



Ao final da década de 70, havia em Vila isabel um moleque Rubro-Negro  que insistia em jogar pelada descalço na rua de paralelepípedo. Tinha o chamado "pé de moça", na gíria da bola. Criava calos de sangue, mas não ligava, pois o pai, à noite, esquentava uma agulha no fogão, furava-lhe uma a uma as bolhas e deixava uma linha em cada uma delas como um dreno. O problema pro moleque Rubro-Negro é que tinha de ficar o dia seguinte sem poder jogar bola nem com "all latex", o tênis da época muito usado em futebol de salão pela leveza, como se se estivesse, de fato, descalço.

Outro problema aí também era ir "só pra ver". O moleque Rubro-Negro encostado no poste vendo os outros, a bola quicando, às vezes mesmo ela lhe chegava perto e ele dava um toque devolvendo-a à pelada. Não resistia:

"A próxima é minha."

A pele fraca do calo com dreno era estourada e novamente a operação com o pai se repetia, sempre à noite. O pai não gostava, dizia "bemfeito", mas era o filho, novamente a agulha quente, linha como dreno e vida que segue.

Um dia o moleque Rubro-Negro achou que aporrinhava e não mostrou ao pai os pés estourados. No quarto, de madrugada, a dor insuportável e o moleque calado, não querendo acordar o velho que saía cedo pro açougue. Conseguiu dormir, mas, quando acordou, a dor era tanta que não dava sequer pra ir pra escola. O pai teve de vir e, ao ver o estado do pés do moleque Rubro-Negro, achou melhor levá-lo à uma clínica, ali perto, na Teodoro da Silva com Gonzaga Bastos. O moleque Rubro-Negro havia infeccionado os calos e precisava "lancetá-los". O moleque Rubro-Negro nunca mais se esqueceu do que o médico disse:

"Tem de lancetar. Está infeccionado."

Lancetar era meter o bisturi à sangue frio, pois a anestesia, naquela situação, era inútil.

Lembro-me da história deste moleque Rubro-Negro da zona norte carioca e faço a relação com Certeau, em que leio, em "A Escrita da História", o tópico "A História Como Mito", a praça grega e as ruas árabes. É vermelha, como nos calos dos pés daquele moleque Rubro-Negro, a cor destas praça e ruas. O povo resolveu "lancetá-las", expondo a história como mito, de que fala Certeau, como a história que não investiga o não-dito, mas apenas reproduz a tradição, uma lenda vulgarizada.

Pode-se, então, dizer que a tradição é uma espécia de narrativa consensual, por isso muito próxima do mito, na expressão da consciência e do desejo? 

Consciência e desejo "lancetados" no calo dos pés do povo que resolve tomar a própria vida sem pedir licença?

SRN

Nenhum comentário:

Postar um comentário