terça-feira, 17 de setembro de 2013

A Morte e a Morte da Jules Rimet

Por Máximo

Desculpem-me, mas não resisti ao plágio do título do romance curto de Jorge Amado, "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'água", um boêmio morto, cujo cadáver é levado por dois ou três amigos, igualmente boêmios, igualmente marginalizados, do velório solitário da vergonha da família para as ruas de Salvador, para o roteiro da vida que levara em puteiros e cachaça. É que o sportv exibiu hoje de madrugada uma reportagem cujo título é "A História da Jules Rimet", em cronologia factual disciplinada, correta, conforme convém a um trabalho de jornalismo, a despeito do estereótipo, ao qual não resiste, ao interpolar à narrativa um negro magro, sem dentes, mas, intencionalmente, esperto, na ponta da língua a seleção de 70 e os fatos e nomes envolvidos no roubo da taça conquistada definitivamente com o tricampeonato no México. Indispensável, entretanto, análise. E a construção do símbolo da paixão encontra no trajeto, atravessando contextos bastantes diversos e que leva ao  roubo e perda definitiva da taça, em 1983, no Brasil,  uma excelente oportunidade de demonstração histórica. 

Em 1921, o francês Jules Rimet assume a presidência da Fifa, que havia sido fundada em Paris, em 1904. O empenho de Rimet revela-se decisivo à realização do projeto original da entidade de organizar uma competição internacional com times que representassem seus respectivos países. Na ausência de interesse local, no continente de constituição da Fifa, Rimet consegue do outro lado do Atlântico, no Uruguai, campeão olímpico e prestes a celebrar seu centenário de Independência, a realização da primeira Copa do Mundo, em 1930, com a participação limitada de europeus apenas aos países cujos corifeus da bola eram próximos ao presidente da entidade de controle do futebol: França, Romênia, Bélgica e Iugoslávia. As demais equipes eram todas do continente americano: Brasil, Uruguai, Argentina, Peru, Chile, Paraguai, Bolívia, México e EUA. Não havia eliminatórias e todos participaram por convite. 

A taça que levaria o próprio nome de Rimet é resultado de uma encomenda pessoal do francês a um ourives de Paris. A deusa grega da vitória, Nike, surge então confeccionada em ouro, com pouco mais ou menos 30 centímetros. Deveria ter um dono. A seleção nacional que vencesse três vezes a Copa, realizada de quatro em quatro anos, a possuiria em definitivo. Considero aqui, nesse movimento físico, que abarca o simbólico, um aspecto relevante do processo de construção da paixão como signo de historicidade própria. Quanto não há de ressentimento e angústia sociais nas respectivas decisões dos títulos de 34 e 50?



O boato de que Mussolini não entregaria a Jules Rimet senão ao próprio time italiano demonstra como a bufonaria aparente do fascismo encerrava o terrífico em manifestações públicas de consenso coletivo. Havia em Mussolini um ressentimento simbólico que remete ao que Hobsbawm, em "Nações e Nacionalismo desde 1870", no capitulo "Protonacionalismo Popular", descreve o "último critério do protonacionalismo, e certamente o mais decisivo, que é a consciência de pertencer ou ter pertencido a uma entidade política durável (...) o que o jargão do século XIX chamou de 'nação histórica'"¹

Reviver a Roma Imperial não importava vê-la também calçada em chuteiras. Natio, fidelitas, communitas, incólumes, desde que campeã do mundo. 34 é, destarte, uma via simbólica que leva o "nacionalismo de nobreza", um consenso de elite de uma temporalidade específica, para a formulação moderna, baseada na "visão retroativa do nacionalismo", estendida "para uma nação constituída presumivelmente pela massa dos habitantes de um país"². O artificialismo da continuidade histórica entre os protonacionalismos de elite e o das chuteiras fazia parte de uma "tradição inventada"³ que envolvia com intensidade os espaços cênicos: o campo de futebol, o desenho e a plasticidade do jogo, a multidão em cena (com licença de outro plágio, "Multidões em Cena", de Maria Helena Capelato, outro texto bem a propósito sobre o Varguismo e o Peronismo), a ridicularia sinistra do bufão Mussolini na arquibancada palanque do Coliseu da bola.

O Atlântico, de novo, tal como em 30, fazendo da geografia um artefato humano: àquela época, para fugir da Grande Depressão; agora, em 50, na catarse das consequências desta, quase um interdito do homem, entregue à própria aniquilação com a morte _ finalmente ela - produzida em escala industrial na Segunda Grande Guerra.



O título brasileiro afirmava-se tão notório, com um time que havia demonstrado ser praticamente imbatível em goleadas sucessivas impostas, espetaculares, que Jules Rimet só havia treinado o português, decorado as  sentenças de praxe para a hora da entrega do troféu que lhe levava o nome e, itinerante, desde o Uruguai em 30. A informação leva-me a imaginar o constrangimento do francês. Porém, a imagem seguinte, acompanhada de uma observação exata, vinda de um dos especialistas entrevistados, cujo nome, ademais, não guardei, é a expressão da angústia coletiva, que nos marcaria, talvez, indelével, mas, com consequências definitivas para o seu personagem: a imagem de Barbosa levantando, lentamente, a cabeça baixa, derrotado, após o gol decisivo do Uruguai e a fala do entrevistado do sportv dizendo que ali, naquele momento, o goleiro negro parecia saber da sua condenação irremediável. 

Já está longo demais para uma postagem de blog.

SRN

1 HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1870: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. p. 88
2 Ibidem, p.88
3 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997

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