sexta-feira, 4 de maio de 2012

E o Futebol Pensa?

Outro dia mandei um e-mail pro Marildo, brilhante intelectual e professor-doutor da UFRJ, falando ser impossível ver, sem risco ao diabetes, quaisquer dos programas jornalísticos da tv. Quanto ao futebol, de resto, o coma é certo. Agora o confronto inventado entre Messi e Pelé. Nessas horas, manifesta-se o que há de pior no que a  crítica aponta  no fetiche da mercadoria representado pelo futebol. Perguntei, então, ao Marildo, se ele dispunha de um texto sobre o fetiche da mercadoria envolvendo o futebol. Gentil, como sempre, disse que é uma linha interessante a se desenvolver, que ainda não escreveu e enviou-me o texto que escrevera sobre o futebol há tempos.

SRN
Máximo




 E o futebol: dá o que pensar?

Por Marildo Menegat


Qual a necessidade do esporte organizado numa sociedade de massas?  Que tipo de organização social representam os esportes como o futebol? O futebol será eterno, ou tende a ter seu interesse diminuído com a mudança das estruturas sociais e mentais que o produziram? Estas já são algumas questões que possivelmente dariam grandes dores de cabeça a esse extenso clube da “paixão nacional”. Pensar o futebol para além do jogo e das tensões de um campeonato, será que isto mantém a “graça” daquela discussão interminável e sem razão que é fielmente reproduzida todos os dias nos bares e esquinas de nossas casas?

A origem do futebol na Inglaterra, na metade do século passado é bastante ligada às camadas populares. A nobreza e a burguesia monopolizavam os esportes que gozavam de um “certo espírito” de dignidade, isto é, que possuíam um reconhecimento social, com regras e locais definidos para a sua prática. Em geral estes esportes eram caros e inacessíveis para o povo. É neste contexto que o futebol, um tanto diferente do que atualmente se pratica, começa a ser jogado. Sua origem é literalmente a várzea, e suas regras no início bem indefinidas.

A partir da década de 70 do século XIX, as sociedades da Europa ocidental consolidam os seus modelos de organização e desenvolvimento industrial. Como decorrência deste tipo de sociedade, o mundo rural perde sua importância frente às cidades. São milhares de pessoas que a cada ano emigram para os centros urbanos. Elas trazem uma experiência de vida formada nas fronteiras de pequenos povoados, na labuta pesada da roça em que os símbolos diários de sua vida social são muito limitados. As necessidades do convívio social em meio às multidões de uma cidade são muito mais complexas. A ordem e disciplina no interior de uma fábrica ou escritório não são da mesma qualidade da chefia do sol num roçado.

O adiamento da satisfação é uma constante no mundo urbano moderno. A vida para o trabalho e seu estresse vão acumulando uma tensão que precisa de territórios civilizados para a sua manifestação. É aqui que a prática esportiva adquire importância. Ela mobiliza o excedente de energia social que não foi utilizado na produção ou foi reprimido pelas normas de organização da sociedade. Desde a torcida até o desportista, todos formam uma comunidade (ou clube?) em que o jogo será uma miniatura de uma guerra, e sem que se atinja de morte o adversário, se procurará vencê-lo o melhor possível. Enquanto este ritual for realizado dentro das regras dos jogos organizados, como o futebol, entre outros, a sociedade vai polindo os instintos mais selvagens e drenando a pulsão para processos criativos, mesmo quando estes representem a agressividade, não realizada de fato, de um jogo.

O futebol, por exemplo, no início de sua prática, não possuía regras bem definidas, e nem os onze jogadores de cada lado obedeciam a uma tática previamente acertada (esta é uma expressão militar que foi transplantada para a organização do jogo). Hoje em dia nem na mais simples pelada isso acontece! Quando foram elaboradas as primeiras regras internacionais do futebol dois grupos disputaram acirradamente duas alternativas de organização do jogo. Para um deles, o contato corpo a corpo (a falta) entre os adversários não deveria resultar em interrupção da jogada, uma vez que o futebol era um esporte viril, logo, para homens - e agressivos, poderíamos acrescentar. Nesta alternativa a sublimação, isto é, grosseiramente falando, a capacidade de fazer de conta, de criar uma representação para a guerra e sua agressividade e não fazer de cada jogo uma guerra, não é levada muito em conta.

O grupo da outra alternativa insistia em coibir o jogo violento. Para eles, que afinal, acabaram vencendo o debate, a prática de futebol deveria restringir-se às disputas duras, mas dentro de regras delimitadas que preservassem o adversário. O não cumprimento dessas regras deveria resultar no banimento do atleta infrator.

A evolução tática do futebol também obedeceu a um certo condicionamento às regras. Já que são onze em campo e o golpe de morte é o gol, é recomendável que se organizem da melhor forma possível para atingir este fim. Porém, o fato decisivo para o surgimento de concepções táticas (que querem dizer, em outras palavras, sem os eufemismos militares, a melhor forma de um grupo organizado se beneficiar das regras estabelecidas), foi a profissionalização do esporte.

Quando o futebol, no início do século XX, começa a se tornar uma paixão para milhares de pessoas, que passam a se associar a clubes e a acompanhar os primeiros campeonatos, toda uma infra-estrutura se formará às suas costas. No princípio, sem fins lucrativos, mas com o tempo, um dos mais rentosos espetáculos da terra! Quando ainda o que estava em jogo, numa partida de futebol, era a arte, a habilidade e a dignidade dos jogadores e torcedores do clube, toda ousadia tática era pouca, e o espetáculo ganhava em emoção com jogadas que somente os olhos de quem às viu poderão nos dizer. Agora, quando o que está em jogo é o lucro do patrocinador do clube, toda cautela (ou retranca?) é pouco e todo replay de jogada é bem vindo para ampliar a propaganda pendurada nas camisetas. Esta deve ser uma das razões para que o futebol arte (que nada mais era do que uma tática ousada, feita com arte e maestria) desaparecesse dos campos e produzisse uma das mais amplas mudanças de mentalidade desportiva.

Na era do rádio e das copas do mundo, principalmente depois da segunda metade desse século, o futebol atingiu um público incomensurável. As paixões passaram a ser cuidadosamente cultivadas pelos meios de comunicação e o futebol adquiriu um papel importante de identidade, não mais de pequena comunidade dentro de uma grande cidade, mas de um tipo especial de comunidade, a da grande torcida ligada ao clube pela fronteira das ondas do rádio. As copas fizeram isso com os países, e, em particular o Brasil, que construiu sobre este esporte toda uma representação da sua forma de ser. Como dizia Nelson Rodrigues, era “a pátria de chuteiras”. Com a televisão, nos anos 70 e 80 do nosso século, o caráter comercial de espetáculo, com todas suas implicações dentro e fora das quatro linhas do gramado, se intensificaram.

Uma forma interessante de observarmos isso é compararmos a diferença entre as quatro copas conquistadas pelo Brasil. Enquanto as três primeiras são o coroamento de uma certa ingenuidade tática, em que o talento e a arte de cada jogador sobrepunha-se à tática, na última copa, nos Estados Unidos, a tática afogou o talento e a arte. O futebol mudou, dirão. É verdade, temos de admitir. Porém, devemos nos perguntar, mudou para melhor? A mudança de mentalidade que acima nos referimos teve nas seleções de 90 e 94 o seu auge. Será que o espetáculo (?) deste escrete é mais belo do que os de 58, 62 e 70? E olhando agora para a torcida, o que nela mudou com essa mudança de mentalidade? A que necessidades sociais estas mudanças precisam dar conta?


Nenhum comentário:

Postar um comentário