Não se pode falar da bola que rola com protagonismos de segunda. Resto do Rio.
A partir do Flamengo, decerto, tudo é possível, e este blog, se pretende alguma utilidade, é a de divulgar fontes, temas e textos relevantes. Um blog deve ser mesmo um meio de divulgação.
Como disse, em tempos de restos do Rio, vale a reprodução da entrevista com o Embaixador Alberto da Costa e Silva, publicada no número 1 da revista Juca, dos alunos do Instituto Rio Branco, futuros diplomatas.
O tema, dignamente Rubro-Negro, é a África.
SRN
Máximo
Revista Juca 01 / Entrevista
com o embaixador Alberto da Costa e silva
Por Marcus Vinicius Marinho
Defensor do estudo da história africana como um dos pontos focais para a educação no Brasil, Costa e Silva afirma que tal aprendizado é essencial por estar extremamente ligado à realidade e à história brasileira. “Durante pelo menos duzentos anos , nossos meninos aprenderam tudo sobre Gengis Khan, Luís XIV, Pedro I da Rússia. Mas ninguém ouviu falar em determinadas figuras e acontecimentos históricos que tiveram grande influência sobre o brasil. Se você se esquecer disso, acaba deixando de entender pontos essenciais de nossa história”, afirma, enfatizando a função de construção e formação que o escravo vindo da África teve em nosso país, por exemplo, no caso da pecuária. O diplomata alerta, no entanto, sobre os riscos de apropriação da história africana por uma parte da população brasileira. “Não devemos transformar isso num gueto, precisamos utilizá-la para explicar o Brasil como um todo”.
Eis a íntegra da entrevista com Alberto da Costa e Silva, feita após a palestra do Embaixador no Centro Cultural Banco do Brasil, no dia 13 de fevereiro de 2007, em paralelo à exposição “Réplica e Rebeldia”, concedida pelo Instituto Camões de Lisboa.
Juca – Na palestra que fez
em Brasília, o senhor disse considerar a teoria das nacionalidades um
“micróbio” para o continente africano, uma espécie de “segundo colonialismo”.
Por quê? Quais são as principais dificuldades resultantes do choque entre
valores tradicionais africanos e os importados da Europa e, mais recentemente,
da América do Norte para a síntese da modernidade africana?
A.C.S. – A teoria de que a
cada nacionalidade deveria corresponder um Estado faz ainda grandes estragos na
Europa, como vemos nos Bálcãs, e só não os faz mais porque países como a
Grã-Bretanha e a França souberam resistir às pressões secessionistas e
fragmentárias. Na África anterior ao colonialismo e ás influências intelectuais
europeias, o comum era que os Estados, e não só os que cobriam grandes
extensões e tinham populações numerosas, mas até mesmo muitos daqueles tidos
por menores, compreendessem mais de um povo, mais de uma etnia, mais de um
grupo com línguas, valores e costumes diferentes, que não só conviviam, mas se
completavam. Dou um exemplo: o do reino de Segu, no chamado delta interior do
rio Níger, no século XVIII. Ali havia bambaras, fulas, somonos, soninquês e
mandingas. Todos cultivavam a terra e criavam gado miúdo, mas os bambaras se
tinham por caçadores e guerreiros, os fulas, por pastores de bovinos, os
somonos, por pescadores e canoeiros, os soninquês e mandingas, por comerciantes
e plantadores extensivos de milhete. As elites intelectuais que comandaram os
processos de independência africana trouxeram o micróbio da teoria das
nacionalidades da Europa para a África, e, da grave infecção, que provocou
tantos conflitos armados, esta ainda não se curou, embora para isso, de algum
tempo para cá, comece a esforçar-se. Jovens e idealistas, os próceres da
independência africana quiseram criar países conforme as teorias aprendidas dos
europeus e impor os seus sonhos aos seus povos, sem maior apreço pelas
estruturas sociais e pelos valores que haviam resistido ao impacto colonial.
Eram homens do século XX, do meu século, em que tanto se acreditou, tanto na
Europa quanto na Ásia e na América, que se podia voluntariamente refazer o
mundo, com os resultados trágicos que testemunhei e o elenco de tiranos que
vocês conhecem.
Juca – No entanto, ainda
existem na África reinos monárquicos dentro de Estados cunhados à maneira
europeia. Existe aí uma lição a ser aprendida por outros povos em tempos de
“globalização”?
A.C.S. – Quando fui à
Nigéria, em 1960, para as festas da independência, ainda vi reunidos em
assembleia os chefes dos diferentes reinos, emirados e cidades-estado que os
britânicos haviam amalgamado numa federação. Não sei se isso voltou a suceder, mas
sei, pela experiência dos três anos que passei naquele país, que o oni ou rei
de Ifé, o obá do Benim, o emir de Kano e os outros chefes tradicionais estavam
mais próximos de sua gente do que os membros da Câmara dos deputados ou do
Senado. O que, desde há muito, me pergunto é se, caso se houvesse criado uma
espécie de câmara com esses chefes, que representavam os diferentes povos que
compões a Nigéria, e a ela dado voz, o país teria vivido a tragédia que foi a
guerra de Biafra.
Juca – O que dizer das
relações Brasil – África em perspectiva? Como eram os tempos, por exemplo, de
política externa independente, especialmente, no que se refere ao
relacionamento do governo brasileiro com o continente africano? Quais eram as
percepções dos nossos diplomatas, à época, a respeito dessa aproximação?
A.C.S. – O Brasil possui uma
longa história de relações com a África. Quem quer que leia os Relatórios do
Ministério dos Negócios Estrangeiros do Império verificará, pelo número de
páginas a eles dedicado, a importância que tinham estas relações em nossa
política externa. O Império chegou a designar um encarregado de negócios em
Freetown, na Libéria, em 1850, três anos, portanto, depois de se declarar
aquele país uma república soberana, e mantinha na África uma boa rede consular,
que não se desmanchou de todo, quando, no fim do século XIX, os europeus ali se
impuseram como colonizadores e praticamente nos excluíram daquele continente.
Já em 1918, contudo, substituíamos os consulados honorários no Cabo e em Dacar
por repartições de carreira, para atender às necessidades da navegação marítima
e, mais tarde, no caso de Dacar, do transporte aéreo. E, após a Segunda Guerra
Mundial, abríamos uma legação em Pretória e outra em Adis-Abeba.
A partir da independência de
Gana, em 1957, a África voltou à agenda da diplomacia brasileira. Naquele mesmo
ano, tomaria o Brasil a iniciativa de propor, nas Nações Unidas, a criação da
Comissão Econômica para a África, nos moldes da CEPAL. E a cooperação econômica
nas áreas do café e do cacau começara a dar-se mesmo antes da série de independências
africanas. Durante este período de estabelecimento de novos Estados soberanos,
o Brasil foi dos primeiros a reconhecer todas as independências e esteve
presente na maioria das cerimônias comemorativas. Em 1960, ainda no governo
Kubitschek, o Brasil criou embaixadas em Dacar e Acra, e recebeu a primeira
visita oficial de um Chefe de Estado africano, o imperador Hailé Selassié, da
Etiópia. Não descurou, portanto, o Brasil da África, tão logo esta voltou a ser
senhora de si própria. Mas, na vigência da política externa independente, que o
meu querido amigo Afonso Arinos, filho do outro Afonso Arinos, que a pôs em
prática, prefere chamar de diplomacia externa independente, foi dada uma grande
ênfase às relações com a África, e o continente africano voltou a ser, para a
opinião pública, uma realidade.
É difícil, para mim, dizer
qual a percepção que tinham então os nossos diplomatas a respeito dessa
reaproximação, porque estava na Europa. Sei que João Clemente Baena Soares, a
quem substituí na Embaixada em Lisboa, tinha por ela enorme entusiasmo. Entusiasmo
que já era meu, quando, em 1958 e 1959, me ocupava dos assuntos africanos no
Departamento Econômico do Itamaraty. A Casa deu-me depois enormes oportunidades
para começar a conhecer de fato a África. De Lisboa, onde estava lotado,
mandou-me, em certos casos, mais de uma vez, à Etiópia, à Nigéria, ao Senegal,
ao Togo, ao Daomé, à Costa do Marfim, aos Camarões e a Angola.
Com a renúncia de Jânio
Quadros e a demorada crise política dela decorrente, a África perdeu por algum
tempo relevância nas preocupações brasileiras, mas não se apagou de todo.
Continuamos a reconhecer as novas independências africanas; recebemos,
entusiasticamente, em setembro de 1964, a visita oficial de Léopold Sedar
Senghor; enviamos missões comerciais aos países africanos; continuamos a nos
entender intimamente com eles em matéria de café e de cacau; abrimos embaixadas
em Abdijã e em Kinshasa; e, em 1966, comparecemos com importante delegação no I
Festival de Artes Negras, em Dacar. O grande aprofundamento nas relações entre
o Brasil e a África, de forma sistemática e continuada, teve, porém, início em
1971, com Mario Gibson Barboza – que devolveu à margem atlântica daquele
continente a condição de fronteira leste do Brasil -, e se prolongou, por três
sucessivas administrações, até por volta de 1985. Durante esse período, o
Brasil figurou entre os principais parceiros, em quase todos os planos, de
vários países africanos, nos quais era visível a presença de nossos produtos,
de nossos investimentos, de nossa cooperação técnica, de nossa televisão, de
nosso futebol e de nossos artistas. Veio, depois, uma espécie de refluxo,
porque não soubemos nos adaptar à crise que se abateu sobre a maior parte da
África e nos deixamos acabrunhar com as nossas próprias dificuldades.
Juca – Qual a sua percepção
do momento atual das relações Brasil – África? Quais são os principais desafios
contemporâneos para a política externa brasileira no continente africano?
A.C.S. – Perdoem-me, mas me
deixem confessar, antes de tudo, o meu contentamento pessoal. Não trabalhei nem
me gastei em vão. O Brasil retoma um interesse pela África do qual nunca me
apartei. E os principais desafios serão os da perseverança, da constância, da
resistência à tentação de uma política fenícia, de uma política de resultados
imediatos, sobretudo na área econômica, e a compreensão de que as várias
Áfricas – pois a África é um continente com múltiplas culturas -, até aquelas
que mais se parecem com o Brasil, dele são, com quase que a mesma intensidade,
diferentes. Há que chegar a cada um de seus países com humildade, de coração
aberto e culturalmente bem armado, consciente, porém, de nossas
responsabilidades como parceiro, porque o Brasil – o Brasil que hoje é
extraordinariamente melhor do que o dos meus quinze anos de vida, a tal ponto
que um teria dificuldade para se reconhecer no outro – é um país muito mais
importante e tem um peso internacional muito maior do que julgam os nossos
desânimos.a África é difícil, mas é inseparável de nossa vida como nação. E
cobra de nós uma política mais do que de cooperação. O nosso maior desafio será
de saber agir generosa e positivamente, sem esperar receber como resposta mais
do que amizade. E compreender o que já devíamos saber de cor: nós, diplomatas,
embora nos apressemos a solucionar os problemas de cada dia, trabalhamos
sobretudo num outro tempo, e o nosso ritmo miúdo disfarça ou convive
polifonicamente com um outro, largo, aquele que verdadeiramente importa e no
qual se funda o que será o futuro.
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