“A adesão às cores de uma instituição ocorre de
acordo com as representações sociais que passam a compor a identidade de um
clube de futebol.” (COUTINHO, 2013, p.8)
Este trecho, que me chama logo a atenção, é
revelador de como o futebol mobiliza e condiciona o registro. Lembrei-me do
cenotáfio de Benedict Anderson. Também de Freud, em “Escritos sobre a Guerra e
a Morte”, sua desconfiança com o exagero do número dos homens transformados
pela cultura. E não é levar muito longe considerar na força social rubro-negra
condicionamentos anteriores à capacidade de escolha de um indivíduo, assim como
não há, na Catalunha, outra alternativa para o moleque senão torcer para o
Barcelona. Pularia, portanto, este trecho para ir direto à formulação do
problema: o recorte, 1933-1955, e o argumento da popularização do Flamengo,
encetado a partir do profissionalismo implantado no futebol nos anos 1930 e
concomitante à modernização autoritária do estado brasileiro, no desdobramento
do Estado Novo, na busca de fontes populares para a política cultural
nacionalista. Trata-se da contribuição rubro-negra a uma questão que mobiliza
diferentes autores, com concepções distintas, à direita e à esquerda no campo
teórico.
Liberal, Ernest
Gellner, enxergando na industrialização europeia a condição de existência do
nacionalismo, considera que o capitalismo moderno, destarte, fornece a
parafernália técnica integrativa a exigir um conteúdo de escala equivalente.
Benedict Anderson concorda, falando em “capitalismo editorial” e
“vernaculização”. A imprensa e a escola padronizam a língua de transmissão da
história da nação, marcada por heroísmo e grandeza. A organização social passa
a ser regida por referentes estabelecidos pela língua padrão, sem cujo uso
ficam reduzidas as possibilidades de comunicação e entendimento. Em
contrapartida, não à toa, na modernidade, a importância do código no
reconhecimento identitário, com grupos buscando afirmação e distinção através
de linguagem simbólica própria.
O nacionalismo buscava
a homogeneização, relegando as especificidades, porque seu propósito era a
unidade. Uma ação tão mais intolerante quanto maior os riscos à hegemonia, de
que os períodos mais críticos podem ser observados no início da modernização
industrial que, na Europa, no século XIX, se confunde com a formação e
institucionalização do Estado nacional e, no Brasil, adiante, nos anos 30 do
século passado, no Estado autoritário sob Vargas. Cabe, pois a pergunta: o
combate ao nacionalismo, nesses termos, é uma luta por democracia, democracia
compreendida como um meio de constituição de direitos?
A semelhança no
pensamento de Gellner e Anderson termina antes de começar a resposta. Gellner
tem razão, mas em parte. A força dos meios não é suficiente. Se fosse, qualquer
conteúdo seria imposto. E o nacionalismo, conforme Anderson, é muito mais do
que ideologia, guarda afinidade com a religião pelo aspecto que encerra.
Futebol e nacionalismo,pelo sagrado que encerram, não se restringem,
respectivamente, nem ao ópio do povo nem à classificação política.
O clube, quando
transformado em símbolo, constitui um meio de influência sobre o imaginário.
Ajuda a nos percebermos, como nos comportamos. A popularidade do Flamengo seria
uma tradição inventada. Conforme Hobsbawm, uma prática inventada, ligada
artificialmente a um passado que não existiu ou a um passado remoto e que se
afirma através da invariabilidade e da repetição.
Na tese de
Coutinho, até onde li, a reconstrução simbólica rubro-negra amadurece com o
título de 1939. Surge o “campeão do povo”, reiterado pelos jornais. É o
Flamengo retomando suas “tradições”, após 12 anos sem título. Uma década
perdida muito conveniente, serviu à estratégia de preenchê-la com uma suposta
ansiedade popular por conquistas. O Flamengo não era exatamente um instrumento
nem estava a serviço do Estado em processo de modernização autoritária, mas
inscrevia-se à perfeição no projeto nacionalista que buscava – vale repetir –
as fontes de uma cultura popular. Um exemplo de consenso, da conciliação de
interesses no interior do poder. A reconstrução simbólica ensejada pela direção
do clube na década da profissionalização do futebol, buscando o povo.
“O fato é que dizer
que as nações são inventadas não resolve problema algum. Como afirma o
antropólogo Roy Wagner, não há como não inventar culturas, do mesmo modo que
não há como manter as suas patentes intactas: elas estão aí para ser copiadas e
modificadas” (SCHARWACZS, 2011, p.14)
A citação de Lilian
Scharwaczs, na apresentação que escreve para o livro de Benedict Anderson,
demonstra que a antropologia não é só o conforto do consenso. Também, através
da imaginação, implica conflito, aproximando a cultura popular da ideia de E.
P. Thompson em “situá-la no lugar material que lhe corresponde”.
Não seria uma bela
pretensão, a partir do Flamengo, ser capaz de interpretar a contradição da
paixão política?
SRN
Referências
Bibliográficas
COUTINHO, Renato
Soares. Um Flamengo grande, um Brasil maior: o Clube de Regatas do Flamengo
e o imaginário político nacionalista popular (1933-1955). Rio de Janeiro:
UFF (Tese de doutorado), 2013.
ANDERSON, Benedict.
Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes
em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Nenhum comentário:
Postar um comentário