quarta-feira, 27 de abril de 2011

"Lance de Sorte: o Futebol e o Jogo do Bicho na Belle Époque Carioca"

Por Máximo

"Lance de Sorte", de Micael Herschmann e Kátia Lerner, é um livro excelente. Seu título completo já diz ao que veio: "Lance de Sorte - o Futebol e o Jogo do Bicho na Belle Époque Carioca". Este blog, pois, nada mais faz do que o justo: divulgar uma bela fonte para o entendimento da nossa cidade, acima de tudo Rubro-Negra.

O trecho que transcrevo a seguir é uma preliminar, uma espécie de jogo de juvenis,  mais ou menos como se fazia quando o futebol era às cinco da tarde, no Maracanã, com o tape reproduzido à noite na antiga TVE.

Reparem a frustração do caráter pedagógico pretendido com a implantação do futebol, no esforço da nova ordem de domesticar o carioca e adestrá-lo ao ritmo do relógio do capital. Antes de um instrumento de dominação ideológica, o futebol acaba apropriado pelo carioca que se recusa à domesticação. 

SRN

HERSCHMANN, Micael e LERNER, Kátia. Lance de Sorte: o Futebol e o Jogo do Bicho na Belle Époque Carioca. Rio de Janeiro, Diadorim ed., 1993, p32-34.





Equidade e Simulacros

Poderíamos nos questionar, a esta altura, sobre os motivos que levam as pessoas a se envolverem tanto com os esportes quanto com os jogos de azar. Que elementos atrativos traria o ludus em si? E mais: a ambiência do Rio de Janeiro teria contribuído para o fortalecimento de alguns jogos?

 Walter Benjamin, em seu artigo "Brinquedos e Brincadeiras", defende a tese de que as brincadeiras são uma possibilidade de treinar para a "vida real", quantas vezes sugira a vontade do praticante. Segundo o autor, ao realizá-la, a criança não apenas "(...) assenhora-se de experiências terríveis e primordiais pelo acontecimento gradual, pela evocação maliciosa, pela paródia, mas (...) [também saboreia] repetidamente de modo mais intenso as mesmas vitórias e triunfos (...)"[1]. A simulação de um acontecimento da vida real proporcionaria não apenas a experiência do prazer por uma eventual vitória, mas a repetição em si ofereceria uma possibilidade de alívio através da vivência do fato, bem como a possibilidade de treinamento. O autor cita ainda uma frase de Goethe: “tudo seria perfeito se pudéssemos fazer duas vezes as coisas”. Desse modo, pela repetição o homem se descobriria e “desvendaria” o mundo.

Outro ponto crucial para a prática e a produção de um clima de “encantamento” durante o jogo é a sensação de equidade que este proporciona; os jogadores, a princípio, disputam as partidas com igualdades de chances e possibilidades. Sem esse dado é rompida a relação entre os jogadores, ficando muito difícil o desenvolvimento do jogo. Em outros palavras, o jogo exercerá seu fascínio desde que os jogadores acreditem que as regras serão respeitadas, e que, portanto, poderão ter alguma chance de serem bem sucedidos.

Reportando-nos ao quadro social em questão, podemos dizer que o jogo representava, entre outras coisas, um canal raro para a vivência de alguma equidade. O discurso liberal e democrático constituía-se em fachada para a prática autoritária. Em contrapartida, a experiência do jogo dentro daquele contexto desigual era realizada com alguma segurança e prazer pela sociedade carioca. Isto era verdadeiro no caso das camadas menos privilegiadas da população, que se encontravam completamente alienadas de qualquer participação no plano institucional (seja no âmbito político, social ou econômico) diante de um Estado excludente, que governava de “cima pra baixo” segundo os interesses do complexo cafeeiro e do capitalismo internacional. Sempre que a elite dirigente se via ameaçada pelos outros extratos da população, burlava as “regras do jogo”, uma atitude, aliás, bastante comum ainda hoje.

“E a deslealdade está em toda parte, parece idiota respeitar as regras e convenções, pois já não se trata de um jogo, mas a luta pela existência.” [2]

Essa luta pela sobrevivência das camadas mais pobres da população do Rio de Janeiro ficou caracterizada por uma atitude, como observa J. Murilo de Carvalho, “bilontra”[3], ou seja, por uma desconfiança em relação a tudo que pertencesse à esfera oficial.[4]

Nesse momento, a entrada em cena do passatempo do esporte, basicamente os elaborados pelos ingleses, é imperativa como válvula de escape emocional para essas sociedades. Ali, os indivíduos simulam vitórias ou derrotas e extravasam emoções, o que a rotina diária castradora não lhes permitiria. Arriscar-se no espaço do jogo não representava perigo ou possibilidade de fracasso para o indivíduo.

Diante desse quadro, a elite dirigente se colocava frente à tarefa de organizar a sociedade, a começar pela sua cidade (modificando o traçado urbano), atuando no âmbito da saúde, do trabalho e do lazer.[5]



[1] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia, Técnica, Arte e Política, São Paulo, Brasiliense, 1987, p.253
[2] CARVALHO José Murilo de.op.cit. O autor sugere que, ao contrário do que aparentava aos “homens fortes da República, que classificavam como “bestializadas” as atitudes dos populares na capital, suas atitudes eram muito oportunas ao não seguir as regras provenientes da esfera institucional. Seguir essas regras, no caso, seria ser ingênuo, não sobreviver, ou seja, aí sim ter uma atitude “bestializada”.
[3] Ibdem.
[4] Em oposição à conduta exemplar proposta pelo Estado, temos a figura do malandro, um misto de herói e bandido popular. Aliás, “ser malandro”, torna-se, de certo modo, uma forma paradigmática de agir de toda população, uma questão de sobrevivência no Brasil. Ver MATTA, Roberto da. Carnaval, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de janeiro, Zahar ed., 1979.
[5] Ao definir o perfil do “bom cidadão”, modelos de conduta no espaço público e privado, o Estado da República Velha definiu também  fronteiras a partir das quais vários indivíduos foram jogados na ilegalidade. A lei de vadiagem (1890) e a Lei do Jogo (1860 e de 1889, mais rigorosa) são belos exemplos dessas fronteiras. Um dado, entretanto, mostra que o intuito do Estado ao formular essas leis mais uma vez não era a equidade, tão pregada pelos discursos liberais. A lei que tentava “coibir a vadiagem” se dirigia apenas para aqueles que não tinham como prover seu sustento por outros meios. As leis que proibiam os jogos qualificados como de “azar” toleravam, em contrapartida, os prados e as jogatinas promovidas pelos cassinos. A ação e o discurso do Estado apresentavam claramente pesos e medidas diferenciados segundo o grupo social.
Essas leis, no entanto, não abrangiam os esportes. Não havia, a princípio, uma preocupação em oferecer uma orientação para o lazer associado à prática do desporto. Até o aparecimento do futebol como esporte popular, em meados da década de 10 do século XX, a orientação do Estado se fez sentir em várias esferas da vida privada, mas não havia uma determinação claramente esportiva. Esportes como remo, cricket, natação, ciclismo e mesmo o futebol (no início) não suscitavam maior interesse. As atividades como capoeira, briga de galo e jogo do bicho eram mais atraentes, apesar do esforço do Estado em condená-las e combatê-las. O processo que deveria “civilizar” o país baseando-se no auto-controle do indivíduo apenas “engatinhava”.

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