Por Máximo
Ser chamado de "novo narrador" é pejorativo, desqualifica, sobretudo quando se é historiador. Como se este desprezasse toda a parafernália técnica desenvolvida para retirar o conhecimento do passado do campo do sagrado - exatamente como se fazia quando a história era a memória da tradição, história-memória, ou, conforme Pierre Nora, quando "a memória instala a lembrança no sagrado".
Ao constituir-se em "novo narrador', o historiador retoma uma tradição mítica, embora enunciadora do que talvez sejamos, daquilo que desejamos ser, mas que cancela a história-crítica que problematiza e que procura lançar luz aos "esquecimentos e silêncios" propositais, produzidos pela história que se confunde com a memória.
Ser um "novo narrador' implica legitimar o discurso dominante, a história oficial constituída a partir de "fontes diretas' que o historiador-narrador não se dá ao trabalho de interrogar.
Embora não seja historiador, mas sociólogo, Murad chama a atenção para o seu trabalho pelo cuidado que revela com a atividade do historiador e devido ao estabelecimento correto das "fontes diretas' que constituíram o nosso futebol: um produto estrangeiro, cuja chegada está devidamente documentada, branco, de elite, destinado igualmente a ser um produto talhado à prática sofisticada, branca, de elite. Portanto, não há, nesta parte de seu trabalho sobre a constituição de nosso futebol, nada que possa "acusá-lo" de transmissor de tradições, sejam testemunhais, sejam inventadas.
Desconfio que a tradição inventada de Hobsbawm tenha sido um simulacro do processo da tradição oral, construída para a sociedade moderna letrada. A modernidade, ademais, também almeja suas tradições e nada mais justo que as invente. Mas, qual a razão de tamanha necessidade, na história que laiciza a vida, em que o resto da memória é apenas o lugar, matéria inanimada, fria de sentido?
Nora já dera a resposta quando escrevera sobre a história da história, que separa a memória. Disse que se trata da busca do mito de origem, uma espécie de evidência laica do sagrado que se perdeu. A construção de tradições, seja de que natureza, não seria, então, uma necessidade, um tropismo humano para uma ligação única com Deus?
Na primeira parte do ensaio do Professor Murad publicada na quarta, pode-se investigar, sacudir, espremer que não há nenhuma vela acesa, tampouco qualquer frango e marafa arriados, tantando animar de espíritos estes lugares frios laicizados pela história. "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho, é trabalho documental, conforme Murad demonstra exaustivamente, de pesquisa séria de estabelecimento de fontes que nada tem de narrativa mítica, ainda que fosse de caráter testemunhal, como a que está na base da tradição das sociedades orais, de que a inteligência de primeira de Hobsbawm se valeu para adaptar na construção de tradições inventadas na sociedade moderna letrada.
Fica claro que o problema está no processo de apropriação e popularização de um produto estrangeiro que, ao contrário do costume, não se impôs, dominante, a nossa cultura, mas, de resto, transformado, metabolizado e devolvido ao mundo como uma das Grandes Artes Mas, aí, isso é ideia dos partidários do anacronismo, de uma "identidade unívoca, niveladora", felizmente esfacelada pela pós-modernidade fragmentária.
Por que não, cara-pálida, o rugby, entoado pelo country da roça do tietê, uma possibilidade de tradição inventada se for convenientemente tentada?
SRN
"A Crítica É Como Violão..."
Por Maurício Murad
A periodização não se inspirou no NFB, como foi dito, o que confunde os leitores. Esta, dentre outras tantas, foi uma das mais sérias e comprometedoras distorções. Sugere desconhecimento da obra de Mário Filho, que não gostava de periodização, porque a identificava com aprisionamento. Os pontos de apoio foram Thomaz Mazzoni, Edilberto Coutinho, João Saldanha e João Máximo. Os dois últimos tomados exatamente no aspecto em que criticam Mário, ou seja, as causas, do profissionalismo, implantado a partir de 1933. Por que os textos-resumos e não o livro? Livro que ambos, autor e orientador, sabiam da existência, como também do acervo descrito acima.
Por Maurício Murad
A periodização não se inspirou no NFB, como foi dito, o que confunde os leitores. Esta, dentre outras tantas, foi uma das mais sérias e comprometedoras distorções. Sugere desconhecimento da obra de Mário Filho, que não gostava de periodização, porque a identificava com aprisionamento. Os pontos de apoio foram Thomaz Mazzoni, Edilberto Coutinho, João Saldanha e João Máximo. Os dois últimos tomados exatamente no aspecto em que criticam Mário, ou seja, as causas, do profissionalismo, implantado a partir de 1933. Por que os textos-resumos e não o livro? Livro que ambos, autor e orientador, sabiam da existência, como também do acervo descrito acima.
A história não começa, quando entramos nela. E este é um idola paradigmático, segundo a clássica formulação de Francis Bacon ( inveterados erros que devem ser evitados, se queremos construir uma ciência e denunciado por Reich, como redundância, sobretudo dos mais novos (1978:138, 139). Há muita gente de boa cepa por aí, trabalhando, problematizando questões teóricas e metodológicas e que nos auxiliam, pela experiência que acumularam, a abrir novas frentes, o que é bom para todos. Negativo, pessoal e profissionalmente, é a natureza desta crítica. Houve exagero e radicalismo, na tentativa de reduzir Mário e nós outros a zero, como se nenhum mérito pudesse ser admitido. A linguagem pesada, incluiu expressões como “talvez oportunistas”, “invenções” (sic) e as leituras tropeçaram na pressa, distorção e superficialidade de textos fora de contextos, movediço e equivocado terreno, que pode sepultar qualquer boa idéia ou conduzi-la a um inaceitável vale-tudo. A crítica exige o exame criterioso e detalhado de outras obras do autor, que tratem das mesmas temáticas, para não ser reducionista. Reler ou ler Costa Pinto e Guerreiro Ramos, importantes sociólogos brasileiros, teria ajudado. Evidente que sempre há a possibilidade de outras leituras, em relação a qualquer assunto. Elas são sempre bem vindas. Mas se o NFB não deve ser a única fonte para os estudiosos (e nisso estamos de acordo), como repetidas vezes aparece no artigo, por que se valeu apenas dele para criticar? Por que não foi, por exemplo, aos acervos assinalados no início deste texto? Não os conhecia, como referenciais ao tema? É possível, e neste caso reproduziu os erros metodológicos (e de técnica de pesquisa de campo), que tentou imputar a outros. A ciência requer uma boa dose de ousadia e uma boa dose de humildade. Quando o pesquisador cinde com uma dessas dimensões, comete erros, por vezes pueris. S. M. J. isso ocorreu e infelizmente, já que era boa a idéia original. Extrema se tangunt . Parafraseando Sartre, poder-se-ia dizer : Mário e o NFB não são nem o Diabo nem o bom Deus. Esta a exata dimensão do problema
Abaixo, apenas algumas questões selecionadas:
1) “Ao recorrer à literatura, temos a impressão de estarmos sempre lendo os mesmos textos ... quase toda a produção ... encontra sua origem e validade no NFB..” (Soares,1999: 119,120)
Mário Filho é um clássico. Clássico é aquele que ultrapassa os limites de sua época e assim torna-se um interlocutor para os subsequentes (Cohn, 1973:2,3). Diálogo é a linguagem por excelência da pesquisa científica (Bachelard, 1982:127). Toda generalização é estranha ao espírito científico (Foucault, 1993:89). Foram cometidos os três pecados capitais, imperdoáveis ao trabalho intelectual: ausência de erudição, relativamente a extensão de um clássico; desconhecimento da literatura amplificada, conseqüência do desprezo ao diálogo e a generalização do sempre quase toda. E mais: desconsideração a outras fontes de investigação, como o cinema e a fotografia, tão importantes para as Ciências Sociais e para o objeto em tela. Na perspectiva de uma Antropologia Visual e/ou Sociologia Imagética, há muitas imagens de época a serem lidas. A fotografia tem para a História, o valor de um documento primário (Barthes, 1970:87). Certamente as observações se alargariam e as conclusões teriam mais densidade. O alcance e o limite de Mário Filho e do NFB seriam alocados em seu devido lugar. Estou agora, no presente, concluindo um livro que relaciona futebol e cinema no Brasil. Talvez possa ajudar e por isso coloco o material pesquisado em quatro anos de trabalho, à disposição de todos os interessados, incluindo um conjunto visual com 40 posters da FIFA, retratando os diversos cenários do futebol brasileiro (não só do RJ), tais como campos, torcidas, dirigentes e jogadores.
2) “... não haveria problema algum se a obra (NFB) fosse tomada como mais uma fonte e contrastada ou cruzada com outras.” (Soares, 1999: 120)
Foi o que fiz e constatei que as outras fontes (pelo menos as relatadas aqui) confirmam, no fundamental, as teses de Mário Filho, com diferenças, embora não estruturais. Há uma fita em áudio – Rádio MEC/1992, tempo de 2 horas, que registra uma conversa radiofônica (eu e Edilberto Coutinho, pesquisador fundamental) sobre Mário Filho e O Negro no Futebol Brasileiro, pontos positivos e negativos. Cópia desta fita está à disposição no Núcleo/UERJ. Vamos em frente. Ao contrário daquilo que se afirma (desqualificando?), Mário não se baseou em causos. Pesquisou durante anos, conversou, anotou conviveu, numa verdadeira observação participante, ele que era um dos estudiosos mais importantes dos esportes de seu tempo (vide G. Freyre, Thomaz Mazzoni , Rui Castro). Mário cometeu equívocos, também acho, e está na fita; portanto, pode e deve ser criticado como todos nós, mas é preciso não radicalizar, ou pode tornar-se prosaico. Mais ainda: porque o artigo não fez o que proclama e cobra? Por que o cruzamento foi parcial, esquecendo fontes historiográficas imprescindíveis, algumas delas já citadas aqui ? Reexaminar o NFB e Mário, como tudo, é sempre fecundo. Esta a razão de ser da ciência. Se é verdade que não deve haver submissão no reexame, estamos de acordo, também o é que não pode haver auto-sacralização olímpica. Metodologicamente, é desaconselhável que a verticalidade da pesquisa caminhe em detrimento de sua também necessária horizontalidade. O processo de investigação e produção de conhecimento não perdoa esse tipo de vacilo. Ao lado do NFB, na época de Mário, antes e depois, há muito, mas muito mais coisas a se pesquisar sobre as relações sócio-raciais no futebol brasileiro, do que se conseguiu enxergar. Olhar para o lado e ver o outro faz bem. Esta aliás uma das lições ontológicas que o futebol ensina. Homero, na Odisséia, fala disso, através de Ulisses, em relação ao Epyskhiros grego, ancestral jogo de bola (ver texto completo em Murad, 1996:138-9).
3) “... novos narradores, construírem legitimações acadêmicas da obra e do autor” (Soares,1999: 120).
Joel Rufino dos Santos, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, César Gordon Jr., Cláudia Mattos e eu (L. H. Corrêa e Ronaldo Helal também, in Coletânea do VI Congresso Brasileiro de História do Esporte, Lazer e E. Física, UGF, 1998: 745(8)) somos, na postura classificatória do “novo pesquisador”, os novos narradores. De minha parte sinto-me confortável pelos ilustres pares, todos com produção intelectual conhecida e reconhecida, mas reclamo, outra vez, a parcialidade: de novo faltou muita gente, o levantamento é curtíssimo, sugere desconhecimento da literatura pertinente e dos estudos e trabalhos contemporâneos sobre o tema, o que retira consistência teórica e metodológica, além de demonstrar fragilidade na parte técnica da pesquisa. Há um enorme continente de investigações historiográficas acerca do negro no futebol brasileiro como metáfora de nossa formação social. Há uma riqueza investigativa crescente, acerca do futebol, nos campi brasileiros, além do Rio e de São Paulo. Estou reunindo o material, sistematizando, arquivando, porque o futuro, tenho certeza, estará a exigir de nós, algo equivalente àquilo que Otávio Ianni fez em relação à América Latina: uma Sociologia da Sociologia do Futebol. Se o “novo pesquisador” tivesse sido mais cuidadoso, teria feito essa revisão da literatura, disponível na UERJ. Com certeza teriam sido menos simplistas e reducionistas, o que é angular para uma tese de doutorado. O locus da crítica acadêmica, há que ser diferente do criticismo.
4) “Mário Filho não escreveu história em sentido clássico...” (Soares, 1999: 121).
Quem faz esse tipo de afirmação, tem que, moto contínuo, dizer o que é fazê-la (e com refinamento teórico) ou seu texto perde e muito em continuidade e conteúdo. Foi o que ocorreu e não só neste ponto. Em várias partes o texto parece que vai mas não vai. Deleuze (1989: 184) criticou essa falácia (é dele o termo), acrescentando que isto é conseqüência de baixa ou recente formação teórica, daqueles que leram mas não problematizaram.
Mais 3 ítens:
1) qual a concepção de história referencial ao “novo pesquisador”? História factual? Empiricismo Lógico? O positivismo cientificista parece dominar, garrotear mesmo, as idéias. É inevitável a lembrança do Círculo de Viena, fundado por Moritz Schlick, que teve a companhia, dentre outros, de Philipp Franck e Otto Neurath . Nunca é demasiado lembrar, que esta é apenas uma concepção de história (melhor: historiografia), discutível como as demais, passível de crítica e construções contrapostas, como qualquer outra e não a única, como sugere o texto. Monolitismo? Sugiro a leitura de A Microfísica do Poder, de M. Foucault . Historicismo? Ouçamos Veeser (1989: 92): “Por causa deste velho esprit d’analyse, que se apresenta sempre como novo, que Weber, embora devedor da tradição historicista, se afasta dela, já que achava inadmissível e primário confundir o histórico empírico, que fornece o material de base para o constructo, com o histórico enquanto objeto“. Gilberto Amado, em l934, analisando a obra de Tobias Barreto, afirmou: “para mim, ainda, em muitas pesquisas contemporâneas, Augusto Comte e seguidores estão no centro, especialmente nos trabalhos de novos pesquisadores”. Sugiro a esclarecedora leitura de “Prolegômenos ao estudo do Positivismo brasileiro: verdade e ideologia”, de G. Bornheim, in Revista Tempo Brasileiro, nº 91, 1997. Só este item mereceria um ensaio específico, com seus irrecusáveis debates, no plano da teoria, da pesquisa de campo e da ideologia.
2) O NFB é classificado, pelo artigo, não como obra científica, mas como romance. Aqui, outro pequeno deslize: o mais correto, creio, na linha do artigo, seria qualificá-lo enquanto crônica. Em diversos instantes, o texto parece revelar pouca intimidade em relação a conceitos oriundos da Teoria da Literatura, os quais são empregados de forma aleatória. Conto, crônica, romance, épico são conceitos definidos na história da literatura e não podem ser utilizados como palavras gratuitas. E este enquadramento(como romance) parece assumir uma tonalidade pejorativa, com o intuito de desqualificar o livro. Lembro que Os Sertões, Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda) e a Formação do Brasil Contemporâneo (Caio Prado Júnior), dentre outros, cada situação com sua especificidade, já receberam, também, o epíteto de “invenções romanceadas sobre a nossa formação social” e, hoje, são (todos!) considerados fundadores de uma compreensão do Brasil. E isto não é novidade, é recorrência. A história do pensamento é plena de situações correlatas. São emblemáticos os casos de Hegel, Marx, Freud, Einstein e Sartre, gigantes do pensamento, também alcunhados de “inventores de realidades”.
3) Mais ou menos obsessiva foi a cobrança pelos dados comprobatórios, pelo suporte empírico, tarefa, aliás, não realizada pelo autor, que dá a entender no artigo ter ficado quase que somente nos jornais de época e mesmo assim, a meu juízo e segundo os acervos que disponho, de um modo incompleto. Jornais de época são necessários, mas não suficientes ao trabalho de campo. Enquanto estruturas palimpsestas que são, têm que ser descamados pelo instrumental do trabalho ou então a cientificidade do processo fica comprometida e induz o pesquisador, por vezes independente de vontade própria, a reeditar uma determinada escritura ideológica, quando imagina estar apenas denunciando outra. Wright Mills (1959) chamou a atenção dos novos pesquisadores para o cuidado que deveriam ter com o deslumbramento, avisando que todo cuidado é pouco, quando se trata do ofício de cientista. Estamos de acordo que dados são necessários para emprestar suporte empírico e fidedignidade aos resultados obtidos. É imprescindível, pois, fazer pesquisa, ter a experiência física com as facetas (sempre plurais) dos fenômenos investigados. Mas isso não é tudo, isso não dá conta por si só da integralidade do processo, que é de problematizações, mediações, articulações, construções. “Toda ciência seria supérflua, se a aparência e a essência das coisas se confundissem” ( Marx n’O Capital (1959, vol. III, 534 ). Arquimedes, muito antes, em Siracusa, Grécia Antiga, século III a. C, já dissera algo assemelhado em relação à Lei da imersão dos corpos, como Giordano Bruno e Galileu Galilei, no que se refere aos movimentos de rotação e translação da Terra. Reparem mais isto: parece ser este pensamento de Marx, que inspirou o de Eric Hobsbawm, na epígrafe do artigo em questão...
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