quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Braço Graciliano

Por 28



Cada passo não era uma representação. A vila, imagem já tão gasta, não mais uma ampliação do típico, do suburbano, aperto pequeno-burguês. Um movimento de concepção, apagando o já posto, há 48 anos imutável, por uma linha de pequenas casas geminadas. Uma menina de nota suave ganhava configuração e se impunha sobre o portão velho, que parecia romper a vulgaridade de seu grafismo e render-se à novas possibilidades de composição. Ela olhava a “figura”. “Figura” era como se referia a alguém, que, como ele,  para ela caminhava. A claridade forte e ácida do 30 de dezembro, niveladora de matizes e gente, refletia-se sobre o espelho de sua altivez. Havia algo de “cult” naquela menina que o calor não desfigurava. Uma forma de elegância para além desta palavra. “Cult” – era isso, era o que queria esclarecer, mas que só conseguia perceber à medida que caminhava em sua direção.  De perto, antes de tocá-la, sentiu-lhe a força, rara, concisa, percebida apenas quando frente ao encanto feminino, que só pode vir do que é calado. Ela, de fato, não o conhecia. E não se sabe se o conheceu.

“E aí, cansada da viagem?”

Ela não demonstra surpresa, avisada que estava sobre o pardieiro. Educada, evitando constrangê-lo, poderia, mas não anda, na ponta dos pés. Instala-se no quarto, à direita da entrada.

Ele a observa detidamente. A brincadeira ao telefone lhe ocorre e cogita mesmo concretizá-la, dizendo à menina que gostaria de tirar a roupa. Não tira, mas insiste, continua a insistir; adiante com a menina sobre o seu colo, reticente, cuidadosa, a espetá-lo aquele olhar que se repetiria com frequência e que, para se tornar gráfico, bastavam apenas as palavras não vocalizadas, contudo expressivas. A primeira vez que conhecia uma menina de olhar gráfico:

“Para. Viajei horas, estou suada, quero tomar um banho.”

Foi no banheiro a primeira manifestação do rigor que ela imprimia aos conceitos. Indispensável a limpeza, lavar o sanitário, a pia, o box de acrílico e alumínio em fusão promíscua. Como um maquinismo emperrado, ele acostumara-se ao hábito. Anestesia por anestesia, convém que ao esquecimento acresciam-se as substãncias.

A presença dela era água represa, contida em diques de filtro com fins específicos. Num primeiro nível, a elegância, o saber separar o que vale do que não vale. Só sociedades que souberam o valor do supérfluo foram as mais capazes para o exercício da influência. A Espanha, quando pragmática, em surto de niilismo, gesta um Franco, que dispensa um Picasso, acolhido na França do supérfluo para um Guernica da morte. Preto e branco, como um coxo de amputação. Neste nível, ela lava o nanquim preto, lava-o por dentro, mas ele não demonstra, temeroso de amá-la, e então reage. Infantil.

“Puxa, cara, como você é bobo.”

Confuso, metendo os pés pelas mãos

“Muito incompetente.”

Inúteis as tentativas de humor negro, a forma de proteção lúcida mais adequada.

Estão num shopping. Ela fala com propriedade de um objeto, cujo preço o assusta pela ausência do costume. Mas, quem está fora da vida é ele; ela nunca sofreu de solução de continuidade. A naturalidade diante do que lhe é inacessível compõe em sua cabeça a imagem de um conduto de água límpida, exclusivo e “cult”. A cada minuto quer mais desejá-la, amá-la da forma em que se sente seguro. Ele a ama naquela mesma noite, pesquisando a madrugada no corpo que se oferece lento, em aroma inebriante, amadeirado. Ela é intensa, de base arquitetônica, como um templo Descobri-la é uma sensação única. Ele se esforça por perder-se, não teme este tipo de viagem. Ela, às vezes, lhe parece ceder, a arquitetura quase transparente. Recua, a cordilheira se recompondo, protetora ao ímpeto do viajante desconhecido. Aí também ele se sente um privilegiado, intuindo a proximidade com o Original. Ali a diferença que faz fixar a beleza, ficando a grande arte para um lado, do outro, a sucessão monótona de nomes femininos, que só são femininos porque têm nomes.

Uma vez alguém escreveu:

“ A única realidade que conta é a da imaginação.”

Por inépcia, prefere a de Graciliano, no conselho que deu à irmã que queria escrever:

“Arte é sangue.”

Cores complementares, ele e ela. Ele, o azul; ela, viva, o laranja. Ele, o Goethe de Fausto, ela o Goethe da Teoria das Cores. Da imaginação, que o surprendia, ela arranca devagar um tijolo, em seguida o cimento, não demora a casa de linhas sinuosas que o convida a conhecer. Uma subjetividade de construção. 

“Arte é sangue.”

Ele repete olhando com saudade a foto de Graciliano, cujo braço ela achou elegante. Pensa num título: “Braço Graciliano”.

“Estou me sentindo plena.”

O “boteco”, metido a irlandês, em vez do Bonno Vox, o Anthony Kids, do Red Hot. Ele não gosta de lugares fechados. Mas, como resistir? Uma fissura provocada pelo vício do cigarro. Conheceu 45 dias tremendo, à base de Carbamazepina, fluoxetina e rivotril, que, aliás, não o adormecia, obrigando a um negócio com um companheiro de clínica, que o escondia na língua, voltava da fila do remédio, se encontrava com ele no campo de futebol e o trocava por um maço de derby.

O primeiro beijo. Era o momento de olhar para o drink dela e brincar com o nome Alexander. Soaria inteligente, na ironia fina de analogia, se houvesse citado Alexander Caldas e feito referência ao inventor do móbile, a escultura de pingente, presa a fios,  hoje tão banalizada que não há quarto onde se instala berço de bebê sobre o qual não se encontra.

“Um gole, posso?”

Para de escrever.

Retomar as impressões e recuperar as sensações não são tão fáceis para o tipo de texto que escreve.  É que o chamaram ao telefone. Na vizinha, sua irmã, sobre questões do inventário, lhe pede cópias da identidade e do cpf, cópias que deverão ser enviadas o quanto antes, sobretudo, antes do carnaval. Cogita também da possibilidade de uma procuração, que ele prontamente se dispõe.

“Como você está, meu irmão?”

Curioso. “Meu irmão”, para ele, forma de tratamento indiscriminada; dito assim, no entanto, dito desse jeito, certamente, tem um gosto de afeto.

“Não tenho outra alternativa senão estar bem. O que aconteceu não tem volta.”

“Então, anota o fax. Esse é o lá de casa. Quer o da escola?”

“Valeu, minha irmã, não precisa.”

“Um beijo.”

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