sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Rio Inconfidente

Por Cátia Cilene




Qual o papel do intelectual como força de transformação da sociedade? Fonte ou produto? Revolucionário ou reformista?

São perguntas antigas, sempre renovadas. E à revisitação conveniente presta-se a preocupação desses letrados no Rio colonial ao final do século XVIII: necessidade-liberdade; teoria-prática.

Nos limites da apreensão do real, a antinomia se resolve e o século XIX que se segue será pertinente a um projeto de Estado, em detrimento da ideia de nação, na construção do Brasil em seguida à independência. Um esforço de construção do que cabe ao Estado tributário à  identidade nacional – eis o que, de fato, substantiva o projeto, diacronicamente, do século XVIII, em seu final na relação desses letrados e a América portuguesa, até recentemente, quando da crise provocada pela Nova História, novos objetos, novas abordagens, fragmentações identitárias.

Muito da leitura intelectual feita por nacionais estava marcada pela visão das fontes que os influenciaram. Fontes, em geral, estrangeiras, condicionadas pela formação de origem.

Em Capítulos da História Colonial, Capistrano de Abreu reproduz tal influência e imputa aos inconfidentes um equívoco que não poderiam ter cometido. Exigia-lhes uma consciência nacional que revelava uma cobrança que só poderia vir de alguém claramente influenciado pela experiência notadamente européia. Era-lhes impossível: aos mineiros não era dada outra alternativa senão pensar a própria província. Ainda não havia a questão nacional do ponto-de-vista da colônia – um atributo da metrópole portuguesa.

O Brasil-Império do século XIX não se sentia confortável com a memória dos inimigos inconfidentes que, ao final do século anterior, assacaram contra a metrópole. Tema tabu, sua abordagem envolver-se-ia, via de regra, em imprecações.

A linha evolutiva e a instrumentalidade para prevenção, esclarecimento e orientação indicam com clareza a marca do dezenove em seu cientificismo iluminista na historiografia do Brasil-Império. A história que se produz gira em torno do Estado imperial e do que interessa ao grupo restrito de uma elita letrada, concupiscentemente cooptada.

No século XIX, a história deixa de ser uma atividade literária para virar produção científica. Uma mudança dentro de um quadro mais amplo em que se discute a questão da identidade nacional na Europa.

O lugar nacional do discurso historiográfico é o IHGB, fundado em 1838, cópia do modelo europeu das academias ilustradas organizadas com base nas relações sociais, o caráter eminentemente elitista da tradição das luzes. Portanto, a discussão da identidade nacional, à reboque da consolidação do Estado imperial no Brasil, não poderia apresentar-se senão marcada por um forte elitismo nasciturno. Qual a ideologia que sustenta tal projeto de construção?

Certamente a que evite inconvenientes. A questão nacional via Estado, tema candente na Europa, deveria evitar aqui a escravidão e a população indígena. Dificuldade anunciada por José Bonifácio, já em 1813: “...amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios, etc, etc, etc em um corpo sólido e político.”

Típico método iluminista: esclarece-se, primeiro, a cúpula, em seguida, o resto. Ponto central da historiografia que irá definir a identidade nacional, tanto interna, quanto externamente, sua particularidade está na ausência de ruptura: a nação brasileira é pensada contínua, desdobramento linear e cronológico do processo civilizatório iniciado pela metrópole portuguesa. Nação, Estado e Coroa: ao contrário da Europa em que Nação e Estado são campos distintos. A identidade brasileira tem de ser, necessariamente, um legado da colonização portuguesa. A metáfora de povos irmãos é uma estratégia a fim de reforçar a ideia de continuidade, ao invés da ruptura. Uma continuidade que apresentava, internamente, no âmbito de uma concepção em academia de elite, iluminista, a exclusão  daqueles não considerados em condições para o exercício civilizatório definido (negros e índios); externamente, a monarquia, regime superior, era a antítese do que se percebia como a barbárie republicana adotada no resto do continente.

Uma conexão oportuna para este trabalho, exatamente neste ponto, seria pensar no futebol, relacioná-lo ao que há pouco mais ou menos 100 anos separa a primeira bola trazida ao Brasil por Charles Miller e as relações entre aqueles letrados e a América portuguesa, autoritária, repressora, ao final do século XVIII. Não haveria uma semelhança com o método que se desenvolve ao longo do século XIX, mudando apenas os pressupostos? O que no projeto identitário imperial era um problema, o “amálgama racial” inviável, a que se referira pejorativamente José Bonifácio, na República, adiante no Estado Novo, é a solução, as “raças” distintas na confraternização da democracia racial. Na era das massas despossuídas em que se temia pelo regime da propriedade, a massa nacional mestiça e negra exigia um encaminhamento. A solução encontrada foi o projeto de Freyre da “democracia racial”, para o qual o futebol que havia sido importado teria uma importância estratégica, seria o locus próprio de experimentação desse projeto. O futebol, entretanto, também como pensava Freyre, não domina mecanicamente a cultura brasileira, é muito mais do que sublimação de irracionalismos e controle social, é apropriado e ressignificado pela esquina carioca.

A periodização começa com a posse a Vice-Rei do Conde de Resende, em julho de 1790. uma conjuntura internacional conturbada, amplamente revolucionária em virtude das recentes revoluções americana e francesa. Inevitável o reflexo no plano interno, sobretudo entre os intelectuais. Repressão é a palavra-chave de Resende, mandando fechar a sociedade literária do Rio, na casa do poeta Silva Alvarenga, considerada cerne da divulgação subversiva.

No Rio era latente a predisposição “inconfidente”. Sua base material assentava-se entre os grandes comerciantes e proprietários, inconformados com o monopólio português que lhes incorria em prejuízos.

Em José Joaquim Maia, estudante carioca na França, onde correspondeu-se e estabeleceu relações com Thomas Jefferson, aparece com clareza o proselitismo de um futuro estado independente de sucesso ideológico garantido, sem contradições relevantes, unificado pelo discurso. Na paisagem social da colônia, os brancos e os portugueses radicados eram o “corpo da nação”, queriam a revolução, tal como a que se investira na França, a independência do jugo português ainda nos moldes do Antigo Sistema Colonial.

O Rio, portanto, reunia todas as condições objetivas para ter uma importância capital no movimento inconfidente. Éramos a convergência material e intelectual, núcleo de letrados, em que as ideias revolucionárias provenientes da França de 1789 encontraram abrigo e seguia o fluxo à sua difusão interna.

Reprimir o Rio era estratégico. Indispensável mantê-lo sob controle, imune ao “contágio francês”, num verdadeiro “cordão sanitário dos Estados monárquicos e conservadores”, aos quais vinculava-se, subordinadamente, a Coroa portuguesa.

O dia 21 de abril de 1789, data da execução de Tiradentes, tinha de ser exemplo. E o Conde de Resende, então,  transformou o Rio num cenário simbólico do anátema, e “que esta cidade ficasse isenta e ilesa do contágio de tão infame conspiração”. O rito, para maior eficácia, necessitava apoio sagrado e “no dia 26, na Igreja dos terceiros dos Carmos, oficiou-se o te deum, em agradecimento a Deus pelo benefício que fez a estes povos em se descobrir a infame conjuração.”

Do enforcamento de Tiradentes ao futebol carioca, passando pelo carnaval e pelo comício das Diretas Já na Candelária, em 84, o Rio sempre foi um espaço para o laboratório de identidades de todos os tipos de Brasil, moderno, pós-moderno, fragmentário, o que for.

Como último parágrafo e porque se trata de um trabalho, de resto, carioca, ocorreu-me o desfile da Beija-flor, se não me engano em 92, Ratos e Urubus, algo pouco mais ou menos com esse título para um enredo revolucionário em que ao Cristo Redentor coberto, numa recidiva do Conde de Resende na figura de Eugênio Salles,  seguia-se um cortejo Rubro-negro esfarrapado, favelado. Carioca.

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