segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Pelo 28

Acabo de chegar da UERJ e encontro embaixo da porta um envelope familiar. O que interessa é contar o milagre, não o nome do santo. Ou da santa, pois deve ter sido difícil tanto tempo, ou mesmo qualquer tempo, junto com 28, Grande Rubro-Negro. Fique tranquila. Vou publicar, sem problema. Sei que ajuda na recuperação ou no que  é possível, melhor dizendo, pois Alzheimer não tem cura. Quem fez o copy fez bem feito.

SRN
Máximo

Pelo 28

“Alguém que mande, que digam o que tem de fazer. É disso que necessitam, acreditem. Porque vocês não são a arte e o outro o filho da puta. Não são a liberdade e o outro a repressão. Seus sonhos não cabem nesse mundo, mesquinho, sórdido, interesseiro. Vestal que são, vocês seriam os únicos puros?”

 Abrem-se as portas do Pedro Ernesto. Cânceres purulentos desfilam em andrajos suas feridas pútridas. Pedaços de dedos, um resto de unha, um testículo podre são restos que se despegam do cortejo humano.  Os pés de 28, em gangrena, ameaçam a amputação e ele pára pra mijar. Mijar no muro da escola Argentina. Sai andando com mijo lento, mas contínuo, como se quisesse derrubar o muro. A urina ocre é ácido no tijolo podre, do emboço velho. 28 pensa em voltar mais vezes e mijar ali todos os dias a mesma quantidade de urina.

De pútrida urina, 28 ainda tem os joelhos bichados, que começam a ranger. O andarilho que é representa uma espécie de fusca velho. Antes do ferro-velho, porém, pode ser útil. Agora mijar na porta do rodízio de massas desvela-se uma obrigação. A morrinha de sua urina ocre, combinada à pasta  de gordura nos latões à porta, à direita - eis um vaso sanitário, inclusive, para defecar,  e só não acompanha os mendigos porque não costuma usar banheiro público. Uma vez - lembra-se - a trouxe ali pra comer, pra depois comê-la, ali. Comida barata. 

Ao entrar na Pereira Nunes, 28 quer mijar agora em frente ao posto da receita. O segurança gordo seria mole, mijaria-lhe inclusive nos cornos, mas 28 agora só consegue mijar, não dá mais pra correr, muito menos sair na porrada. Olha pra porta de vidro. As grades de segurança como se alguém quisesse entrar naquela merda, a menos que fosse pra invadir os computadores e roubar os arquivos dos burgueses de Vila isabel, em seguida, invadir-lhes as contas. Vida que segue. E o negócio é segui-la mijando. Pára num paredão à direita, onde está pintado um painel com as figuras de Noel, Mandela e Maradona. Em qual mijar primeiro? Noel certamente divertir-se-ia, pois não admitia panegírico e revira-se no túmulo como fora constatado em sua exumação recente. Noel que passara a vida de mau hálito, conhecia os abismos, sabia que nada vale à pena, mesmo quando a alma não é pequena como dizia o outro, português. Mijar na cara do Mandela é um bom começo, naquela mansuetude bovina. O CNA foi cooptado - é o que dizem. Foda-se. Mija e foda-se. E 28 agora mija com a mão encostada ao muro por causa dos joelhos. Tira um halls do bolso e joga no chão, pra mijar por cima que o odor é tão forte que nem ele mesmo aguenta. Mija mentolado.

A urina, o andarilho e a imprensa. Tudo é fluxo: o andarilho pelo concreto das ruas, dos prédios, das casas, o jornal pra embrulhar duzentos gramas diários de ração pra cachorro e a urina é o que 28 usa pra mijar agora na tradição, cujo modelo persiste por atualização ocre, meio sanguinolenta, com laivos de pus. 28 não olha pra baixo quando mija. Um hidrante, que nunca mais havia visto, de repente aparece na esquina. Parece sua vizinha. A que mora nos fundos e que toda vez que a vê, tem a impressão de que não tem pés, mas rodas de rolimã carregando um hidrante sujo, descascado, inútil. O hidrante tem língua, mas de utilidade semelhante a de um lp. Quando bota pra tocar, a agulha espeta o grunhido roufenho. Um dia pensa em mijar-lhe na calvíce que se anuncia. Porque o hidrante já perdeu a peça que lhe cobre o topo, expondo um mau cheiro similar ao do mijo que 28 mija. Não lhe fazem manutenção e o que resta é o espaço que ocupa. 28, ao vê-lo, tal como faz com a vizinha, apressa a mijada pra sair mais rápido. Porque no hidrante público  ainda pode mijar, mas na vizinha  apenas pode rezar, reza forte que a mande pro caralho com suas histórias de vaso sanitário. 28 tem urina ocre, mas costuma limpar os ouvidos

Com  chuva, até caveira de burro aparece na rua do rio. 28 estava atravessando a Teodoro pra passar pra Negrão de Lima quando o 433 dá-lhe uma porrada, jogando-o contra a bomba de gasolina do posto. Aí fica difícil, não se podia identificar com precisão o que era o  28, merda de esgoto arrastado pela chuva, cacos da caveira de burro navegando no rio que transbordou, gasolina e urina. Além de mijado, 28 estava fodido. Como havia feito fimose e porque mijar era o seu negócio, 28 e o posto haviam se transformado numa uretra pública. Suspeitava que teria de usar fraldas, daqueles de velho, pra não pingar.

Fralda geriátrica custa caro. Sem dinheiro, 28 arrasta-se, desde o acidente, vagarosa, mas obstinadamente, ao açougue do extra-boulevard. Todos os dias, pela manhã. Lá ganha de favor sacos de aniagem, que costura em casa com nylon, improvisando uma ridícula, mas eficiente fralda. Acostumou-se à nova aparência: a camisa do Flamengo, campeão de 81, campeão do mundo, campeão de tudo, que resultara da coleção dos selos do Lance, sobre a fralda colada com fita crepe que lhe dá um certo ar de Ghandi, ao contrário de Jesus Cristo, que lhe pareceria melhor, ao encontro da barba e do cabelo que deixara crescer.

Um arranjo diário de grande esforço, cuja carpintaria acaba impondo sacrifícios. O principal dos quais é a preguiça de tomar banho. Até soltar todas os adesivos, desdobrar o saco de aniagem, fora a dor do caralho. Porque 28, além dos pés inchados, os joelhos bichados, agora tem uma bacia de platina de segunda arranjada por trocados em rateio pelo bairro. Assim, predomina a preguiça. E não é incomum passar perto dele e sentir-lhe a morrinha. É merda. De fato, 28 defeca na fralda e não se limpa.

Outro dia foi possível vê-lo atravessando novamente a Teodoro, naquele mesmo trecho onde se fodeu. Observou-se que parou, ajeitou um pedaço da fralda, olhando fixo, distante, pro prédio da esquina com a Pereira Nunes. 28 depois contou que se lembrava do terreno que havia ali, cercado por um muro, sobre o qual saltava, limpava o mato, estendia papelão de uma caixa que pegava no armazém do seu Lopes, da esquina da Gonzaga. Era o seu motel. Comera ali, buceta e rabo da Judicéia. 28 contou isso ainda com a mão suja da punheta que acabara de tocar.

28 não gosta de teatro. Perdeu a paciência com cinema, com literatura. Permanece gostando de buceta e futebol. Também se meteu com textos acadêmicos.

Os pés inchados, que não vêm mais da cachaça, e foder fode é a paciência dos outros, por isso lê, mas é burro. Lê 10, não entende 8, esquece uma e a que restou fica nas coxas.

Ganhou uns trocados vendendo a televisão e pôde substituir alguns dias a fralda de aniagem. Comprou um pacote de descartáveis e a assadura  diminuiu. Melhorou até o vermelhão da virilha. Coçava os culhões com conforto, na Lapa lotada pro teatro de rua. Já saíra prevenido, o algodão nos ouvidos e não ouviria aquela gritaria de retardado alegre que sempre lhe parece vir de atores, seja de rua, de palco, de qualquer dessas merdas."

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