Por Guilherme Camerino Magro
A madrugada não estava firme, a chuva ameaçava. Enquanto aguardava minha namorada que chegaria de Brasília, resolvera sair do Santos Dumont e dar umas voltas pela Praça XV, pelo Paço, olhar a história material, observar a estética em sua gradação carioca.
"Vai que eu fico."
Paro, olho em volta, agora que a chuva fina se insinuava. O atavismo da área me atraía. Era o que provavelmente fizera-me ouvir, novamente repetidas, aquelas palavras que pareciam uma fantasmagoria.
"Vai que eu fico."
Atravesso a Primeiro de Março, em frente à caixa de vidro da Cândido, caricatura bauhausiana, onde moradores de rua tentam se abrigar sob caixas de papelão recolhidas nas lojas da cidade, lá na Uruguaiana, perto da Presidente vargas. Em meio à confusão dos grafites e dos panfletos colados à parede da igreja, assim que se atravessa a rua, observo um cartaz em polonês do filme “O Poderoso Chefão”. Não leio polonês, mas há uma identificação grafitada com uma seta. A face de Marlon Brando é uma composição gráfica soturna, quase diabólica. A chuva aperta, uma cortina espessa turva os moradores de rua, a própria rua, o prédio da Cândido.
Do cartaz escorre sangue. São os olhos de Brando duas postas vermelhas, sem matiz, sem piedade, sem racionalidade. Neles residem a besta-fera, o mal puro que precisa ser usado.
Começo a ver os ossos se multiplicarem, o vinho soturno em sangue dos moradores de rua despedaçados, estripados pela força avassaladora. O vazio cinza, sob luz baça, é preenchido por gritos de desespero.
O horror tem método.
Os crânios são os últimos a serem decepados, abertos, expostos.
Velho e aleijado, um deles arrasta-se e arrasta-se e arrasta-se. A besta parece se divertir, perseguindo-o aos pedaços. Primeiro o calcanhar, em seguida os dois pés e o velho é amputado à altura da coluna.
Vários objetos misturam-se aos restos do velho, cobrem a poça de sangue, acumulada pela chuva, alcançam-me parado junto ao meio-fio. Pedaços de madeira, latas de leite condensado, pequenas, cascos de cerveja, latas de refrigerante, plásticos de cachaça barata, um pedaço de fêmur, fígado podre, rins.
Acompanho a chuva ser sugada pela besta de volta ao cartaz na parede. O cartaz também desaparece.
A madrugava anunciava o som da morte, mas abstraía-se, livrava-me a cara, que não tive tempo de sentir medo. As sílabas sibilantes, escorrendo pela parede, pela caixa de vidro, pelo meio-fio, iam agudas como signos e, da escuridão, cobriam os cadáveres, seus restos espalhados. Uma composição de sangue e asfalto apresentava aquelas palavras e convencia-me tratar-se do demônio, que parecia cortar a parede do prédio e imprimir, de fato, a informação nova.
“A morte é um vinho.”
Havia me esquecido de Ângela, que já deveria ter chegado.
Como não uso relógio e porque não costumo seguir-lhe o tempo, decido que não iria preocupar-me.
Mas, não podia ficar ali parado, vendo as ratazanas saindo dos bueiros, misturando-se aos detritos e aos pedaços humanos resultantes da ação que presenciara e que ainda não conseguia explicar.
Lembro-me do risco que corro e esperar juntar gente e polícia, como logo ocorreria, o que iria dizer? Aqueles cadáveres aos pedaços. Como explicar que o demônio saiu dos olhos de um ator de um cartaz de cinema preso à parede e escrito em polonês?
Chuto uma ratazana que vinha de encontro ao meu tênis sujo de sangue. Meu gesto aguça a sanha das demais que atacam. Saio fora batido, atravesso de volta pro Paço, continuo correndo sem olhar pra trás até chegar no recuo do Santos Dumont.
Diria pra Ângela que me atrasara devido a uma encomenda, que tivera de pintar até agora há pouco e não houvera tempo de trocar de roupa, por isso, o vermelho da tinta acrílica.
Em frente ao desembarque A, já vislumbrara a irritação de Ângela. Pequena, praticamente do mesmo tamanho da mala de rodinhas.
“Francamente, é a última vez. Não venho mais aqui.“
“Nem um beijinho?”
Ângela já se dirigia para a fila do taxi.
Recuso o preço fechado, quero pelo taxímetro, decido que iremos de ônibus e não é preciso muito pra convencer Ângela. Andar até o ponto do 232, dentro do mergulhão, além do alívio, permitiria-me pensar no que ocorreu, buscar algum sentido. Acompanhara o Alzheimer de minha mãe, agora ao que parece também do nosso companheiro 28, informara-me, Ângela, aliás, fora muito útil descobrindo em Brasília uma unidade na UNB especializada no tratamento da doença. Portanto, se não havia uma determinação etária, embora muito mais comum em velhos, só podia ser alguma memória recidiva, irrompendo do inconsciente, em sua primeira manifestação patológica.
“Só pode ser isso – pensava, já dentro do ônibus – meu pai era legista, devo ter visto muita estripação de quando criança e não me lembro. Ou do que não me lembro aparece agora que estou ficando maluco. Peraí, também pode ser isso. Loucura ou Alzheimer?”
“Passou a raiva?”
Ângela vira o rosto com desprezo, encara-me, faz uma careta e volta a olhar através da janela. Tem mais interesse no Maracanã, que aparece a sua frente, quando da curva pela Radial.
"Depois eu lhe conto o que Flamengo fez aí. E fez por mim".
Já vou terminar companheiros.
5 anos e 3 meses limpo, sem usar nada que altere-me o estado de consciência.
Só por hoje e Saudações Rubro-Negras.
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