domingo, 10 de outubro de 2010

Domingo, dia de visita

28 é um amigo. E amigos podem ficar anos, décadas sem se ver. Reencontrei-o há oito anos, quando retornei a Vila Isabel. Estava na esquina, caído. Diabetes, não estava chapado. Agora a combinação terrível com o Alzheimer. Fiz algumas alterações no que me contaram, preservando os nomes. 
Domingo,  dia de visita, Grande Rubro-Negro.

SRN
Máximo


Hospital da Lagoa

28 – O que ilude meu peso é a barriga. Mas, eu estou mais leve. Boa parte foi jogada fora com a perna. Mas, o pior é que ainda coça.

28 larga a muleta, sai pulando pelo quarto com uma perna só. Alcança a janela.

28 – Que maravilha a Lagoa. Vou te dizer: morrer dentro de uma obra-de-arte, feita pelo homem, perto de uma outra obra-de-arte, feita por Deus,  é um privilégio.

Negra Linda estranha. Mas, 28 agora fala em Deus.

28 – Vem até aqui com esse burro largo que Deus te deu, encosta aqui.

Negra Linda vai até lá. 28 encosta-lhe o pau, ambos na janela.

28 – Tá sentindo a presença de Deus?

Negra Linda ri.

Negra Linda – trouxe as tintas e os pincéis que me pediu.

28 – Você é uma delícia. Quando voltar na semana que vem, verá este quarto transformado numa tela. Vou morar dentro de uma pintura. Aliás, vou morrer dentro de uma pintura, ainda que pulando numa perna só.

Negra – Tenho de ir , tá? Dei uma fugida rápida. Deixei as crianças com a vizinha. Se cuida, tá.

28 a acompanha, pulando, até à porta do quarto. Na volta, se joga sobre a cama do lado, vazia desde a morte do caboclo na cirurgia de ontem à noite.
28 começa a chorar.  Aos trancos, como se o torax estivesse pra ser arrancado.

28 agora se joga de cabeça no chão. Bate com a testa. Apaga.

O trecho abaixo deve ter sido escrito logo após 28 ter recobrado os sentidos. Quem me deu pediu que o reproduzisse:

28 - Não posso precisar o tempo, uma vez que acabei dormindo. Não, não me refiro ao tempo cronológico, algumas horas, talvez minutos, como os que passara no portão, com Judicéia ao meu colo; mas ao da memória, que, não passando de pálida cópia, fornece pedaços que se selecionam e, à revelia, crescem, fixando-se com nitidez. Sobre eles não atuam o tempo, nem venho pensando, falando, pintando, pulando numa perna só,  com objetivos logicamente descritivos, simplesmente deixando o material fluir, Não é o caso de bancar Deus. Pois, entre mim e Ele ocorreu um tipo de conformação, de maneira que do tempo cronológico e da emulação de nossa convivência ficou um Deus para o inevitável e um 28 modificado até na minha própria linguagem. Quando penso percebo que as palavras surgem compulsivas, querem ser faladas, mas não desperdiçadas, não convindo forçá-las, obrigando-as ao que não pretendem dizer. Deus  tinha estilo? Eis o que perguntava Picasso.  Convivo na sua casa, participei de brigas, comi da sua comida, comi das suas mulheres – bloqueava a aproximação vindo a reserva em que se trancava.
Acho que sonhei. Um sonho projetado pelos irmãos maristas. No filme opaco que me passam, aparece um garoto; indico-lhe que se cale, evitando a advertência. Ele evita, quieto no auditório, assistindo ao filme sobre a história de um outro garoto, cujo sonho é crescer para sangrar no próprio corpo as chagas do Cristo crucificado. O sangue do filho do Deus da infância. Um Deus de potentados, ínvio e isagógico, para que hierarcas tenham o poder incontrolado sobre o homem tornado manipulável. Um Deus interdito, intolerante a contradições de quantos dele se aproximam dentro da amplidão da vinculante notícia do Cristo. Um Deus de profissionais da fé chapada, antes que o “o Senhor conheça o raciocínio dos sábios, porque sabe que são vãos”. Isso é Saulo falando línguas, “as dos homens e as dos anjos”, conhecendo o próprio inferno, atravessando a sua Damasco e se vendo “no espelho e de maneira confusa, para, depois, face a face”, tornar-se Paulo – o apóstolo definitivo.
Não sei se o meu pau endureceu porque a Judicéia se insinuou no sonho, perguntando: “28, da Vila de Noel?” Mas valeu, pois acordei com o pau na mão e levantei disposto a enterrá-lo novamente naquela forca celeste. Da porta do quarto, vi que Judicéia ressonava, lambida pelo vento que vazava pela janela.
A noite piorara o frio.
No reflexo do vidro canelado, entre os arabescos da guarnição, vejo os meus cornos vindo da mangueira, passando pelo elevado do poço, até chegar à porta-de-ferro da oficina, estava largado numa cadeira de praia, meio deitado, meio sentado, de lado, a cabeça caída como um pêndulo sobre o peito sujo; debaixo da bermuda preta, tornada baça pela iluminação da oficina, escorria um líquido que cheirava à caçhaça; ralados de sangue cobriam os joelhos; os tênis brancos vagabundos, imundos, tinham os lados de fora da sola desgastados à quarenta e cinco gráus, como se cortados. Cortado também me parecia o meu rosto, cortado não literalmente, mas por recurso de expressão cubista, do tipo das esculturas que fazia, pela cabeleira grande, igualmente suja, que se embolava sobre os óculos imensos, quadrados, de hastes presas ao aro por durepoxi.
Não procurei ajudá-lo. Nessas horas sei bem qual a hora, o dedo na garganta, o corpo no azulejo, o chuveiro frio, depois água, muita água para a sede de caixa-d’água. E aquela não era a hora.
Agora ouvir Maria Rita, na sua sensualidade sem intenção, que me fascina. Pintar essas paredes, as mesmas coisas, repetidas, repetidas, bate-estaca.
Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e Lico

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