segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Submundo da Bola

Por Landa Araújo / www.vivafavela.com.br

No país de craques como Pelé, Ronaldinho e Kaká, o Brasil tornou-se vitrine para clubes internacionais interessados em jogadores cada vez mais jovens. A possibilidade de viajar para o exterior e ganhar muito dinheiro é o sonho de milhares de garotos. A mudança de realidade para um futuro promissor pode se tornar um pesadelo para vários meninos que aceitam propostas no exterior e acabam abandonados sem nenhum auxílio.

Na máfia do futebol, muitos acordos com clubes sem expressão ou a não adaptação à vida no exterior podem tornar a vida destes jovens um pesadelo. A maior dificuldade destes jogadores que não despontam é tentar sobreviver com outras atividades, mesmo sem falar o idioma local.

“Existem muitos trabalhando como garçons, lavando pratos ou cantando pagode. Alguns se prostituem. Sempre existiu esse tipo de problema. Eu presenciei muitos jogadores que chegaram a Portugal e o nome do clube era outro”, diz Walter Machado Filho, o Waltinho, que jogou no Flamengo na década de 80 e durante 11 anos em Portugal. Atualmente ele é professor de dois projetos de futebol, um no Complexo da Maré e o outro na Praia de Copacabana.

O coordenador executivo da organização de Direitos Humanos Projeto Legal, Carlos Nicodemos, diz que há casos de atletas de futebol desaparecidos: “De acordo com dados da Confederação de Clubes de Futebol (CBF) existem 282 pessoas desaparecidas no mundo, jogadores que saíram para jogar na Ucrânia e em outros países”.

Vítimas do tráfico de pessoas

Tratados como produtos, esses jovens são vítimas da rede de tráfico de seres humanos, mais conhecido como TSH. Rodrigo Paiva, assessor da CBF, afirma que este é um problema mundial e que há uma preocupação das instituições que respondem pelo futebol no mundo. De acordo com ele, não se pode proibir que alguém tenha um representante para as negociações, mas o ideal é que seja um agente credenciado pela Federação Internacional das Associações de Futebol (FIFA): “Muitos vão sem garantias. Estamos preocupados, porque eles (agentes) usam uma série de artifícios. Contratam os pais para trabalhar fora e driblam qualquer tipo de prevenção”, diz.

Há um ano, uma instituição francesa de Direitos Humanos, Culture Foot-solidaire, denunciou ao Parlamento Europeu, através de um dossiê, a presença de 600 jovens da África e do Brasil em situação irregular na Europa.

“Essas crianças foram levadas junto com as suas famílias em um procedimento que visa empregar os pais para que esses adolescentes fiquem em observação, para ver se podem ser comercializadas, ou não, como jogadores de futebol”, afirma Carlos Nicodemos. O especialista reapresentou a mesma denúncia em um congresso internacional na Espanha, que aconteceu em janeiro deste ano. A União das Associações Européias de Futebol (UEFA), fala em urgência na tomada de providências, mas nada foi apresentado até o momento.

Outro problema relacionado ao tema, é a de que os pais muitas vezes são encaminhados para trabalhar em regiões distantes do local de treinamento dos filhos e explorados como mão de obra desqualificada: “Em nosso relatório, noticiamos casos em que os pais são agenciados em subempregos, em postos de trabalho desqualificados e horários indefinidos, para os filhos permanecerem no país”, completa Nicodemos, que termina em julho um estudo sobre o tema. “O tema é muito pouco desenvolvido quanto a isso, estamos montando uma agenda com medidas de enfretamento ao tráfico de adolescentes”, informa.

Pressão da família influencia

O treinador Waltinho conta que muitos pais o procuravam para oferecer benefícios em troca da aceitação do filho: “Tinha mãe que se insinuava, o pai querendo pagar churrasco”. Para ele, parte da culpa de vários meninos irem para o exterior muito cedo é a ganância dos parentes: “Muitos estão apenas preocupados com o dinheiro e não pensam se o filho vai ficar bem, se alimentar”.

Na opinião do agente de jogadores, Anselmo Paiva, que faz as articulações de clubes internacionais e jogadores brasileiros, os pais se iludem por causa da “indústria de sonhos”.

“Vivemos em um País muito pobre e os pais, normalmente, não conseguem visualizar o menino como médico, para eles é mais fácil vê-lo como jogador. Alguns acreditam que o filho vai passar a ganhar 50, 100 mil reais por mês e jogam para o garoto a total responsabilidade de salvar a família, que muitas vezes insiste mesmo se ele não levar jeito para o esporte”.

Rosângela Moreira da Silva é mãe de João Marcos Batista, de 14 anos, volante da categoria infantil do Fluminense, e diz que “já ouviu falar do tráfico de jogadores pelas reportagens na televisão”. Ela diz que analisa bem as ofertas de agentes liga para pessoas do ramo, questiona com outras mães e não dá nenhuma resposta na hora da abordagem.

"Eu já recebi propostas, mas tenho medo de entrar em furada. O Clube (Fluminense) sempre alerta os pais. A Federação deveria ter uma conduta sobre isso, muitas crianças estão saindo mais cedo por causa da lei Pelé. Os empresários deitam e rolam”, finaliza Rosângela, que não quer que o filho abandone os estudos em hipótese alguma. “Eu cobro dele seriedade para que se dedique ao futebol, mas se ele não quiser mais, eu apóio a fazer o que bem entender”, diz.


Agentes credenciados - melhor solução

A CBF e a FIFA credenciam agentes através de uma prova de seleção, uma maneira de identificar os empresários aptos ao setor de articulações internacionais. Mesmo assim, Anselmo Paiva deduz que apenas 30% dos empresários no mercado possuem registro, o que equivale a cerca de 300 credenciados. O cadastrado pelos órgãos FIFA/CBF traz mais garantias para o jogador, pois o empresário cumpre algumas tarefas como fazer um seguro de vida e fica sujeito a multa, suspensão e advertência se algo de errado acontecer ao atleta.

Também cabe ao agenciador ajudar nas despesas do jovem atleta, como chuteira, plano de saúde e outras necessidades que não podem ser arcadas pela família. O retorno do investimento vem com o pagamento da instituição esportiva que comprou os direitos do passe do jogador.

Anselmo alerta que nem toda proposta sugerida é de qualidade: “Alguns empresários prometem que vão levar para Portugal e Itália. Na maioria das vezes são clubes pequenos”.

“A FIFA veta que clubes e atletas negociem com agentes não credenciados, só que fazem vista grossa. Eu faço parte da Associação Brasileira de Agentes de Futebol, já mandamos algumas notificações para a CBF, mas se o jogador agenciado for bom, o registro não importa”, diz Anselmo.
De acordo com o assessor da CBF, Rodrigo Paiva, a afirmação do agente não condiz com a realidade vivida pela Confederação: “Não dá para responder o que não existe e não tem. A CBF só reconhece o agente FIFA. Não nos relacionamos com agente de futebol, a transação é feita entre clubes e agentes. Gostaria que um exemplo fosse citado, estamos acostumados a sofrer acusações”, afirma.

Nicodemos acredita que as parcerias realizadas para enfrentar o tráfico de pessoas serão de instituições governamentais e não-governamentais que se dediquem à infância e adolescência, e não instituições do futebol. “Nós não acreditamos que no universo do futebol encontraremos instituições privadas que nos ajudem nesta temática”, resume o especialista.

Lei Pelé – brecha para clubes internacionais

Pela lei Pelé, nº. 9.615, de 24 de março de 1998, os clubes deixam de ter o domínio do passe dos que treinam nas categorias de base e o contrato de trabalho entre associações esportivas e jogadores só pode ser efetuado com a idade mínima permitida pela legislação trabalhista de 16 anos, com contratação, que pode ser feita por um período de três anos.

“Esta lei é uma faca de dois gumes. Ela veio para favorecer o passe livre do jogador, como se fosse uma alforria. Do outro lado, abre um leque para a comercialização dos jogadores por empresários, sem dar garantias aos jovens. Hoje, são mais de trezentas favelas trabalhando com futebol e mais de quatro mil agentes em cima deles como lobos”, diz Ricardo Velussi Nunez, conhecido como Mr. M, treinador no Futuro Atlético Clube, em Campo Grande.

Esta brecha incentiva que os olheiros e empresários procurem mais atletas nas categorias infantil, mirim e pré-mirim. Ambos fazem incursões nos locais destinados a treinamento para observar e escolher os possíveis jogadores.

“O Brasil é muito rico em material humano, mas não apóia seus atletas. Dos garotos que treinam aqui, 90% são de comunidade e eles não têm uma alimentação correta ou dinheiro. Quem os negocia não dá assistência depois. A prevenção contra falsas promessas é muito difícil. Ao retornarem ao Brasil, os adolescentes chegam frustrados, amargurados, perdidos”, relata Ricardo Velussi.

Presas fáceis pela dura realidade

Os números em torno do esporte incentivam os jovens a mirarem no mercado do futebol. No ano passado, a FIFA adquiriu como receita US$ 882 milhões, contra US$ 749 milhões em 2006. Se somados os papéis emitido nas bolsas de valores e seus ativos, a receita da Fifa chega a US$ 1,15 bilhão.

Anselmo afirma que a margem de meninos que se tornam profissionais e reconhecidos é muito pequena: “Com os jogadores de base que eu trabalho, menos de 10% dão certo. É muito difícil, não existe uma fórmula de sucesso”, diz o agente.

Ainda em 2007, segundo o relatório de transferências internacionais da CBF, 1085 profissionais foram para fora do país e 489 voltaram do exterior no mesmo ano. O que significa uma média de 596 jogadores trabalhando no exterior por ano.

Para Waltinho, falta mais divulgação das dificuldades e do perigo dos contratos entre agentes e jogadores. “Infelizmente a mídia só mostra Robinho, Ronaldinho. Falta o outro lado. Tem clube que paga R$ 500 reais para o jogador, e às vezes nem paga. Tem empresário que assina o contrato de rescisão e de admissão ao mesmo tempo, se o menino não der certo é dispensando sem direito nenhum”.

Elias da Conceição de Souza, de 13 anos, aluno do projeto “Show de bola”, tem esperança de um dia ser descoberto por um agente: “Eu treino para ter um futuro. Tenho muita vontade de ser jogador, ainda mais se for um time grande como Flamengo, Vasco, Botafogo, Fluminense... De repente vem um olheiro e vê a gente na escolinha,” diz o aluno.

Dicas de prevenção ao tráfico de jogadores para os pais:

- Analise o local de treinamento do seu filho, veja se há seriedade no trabalho feito e uma equipe de profissionais formados;
- Não assine nada sem consultar um advogado;
- Ao analisar um contrato, exija ser procurador, junto ao agente, de seu filho;
- Não aceite propostas sem antes consultar pessoas do mercado e buscar outras informações;
- Peça para ver a carteira do agente FIFA/CBF que lhe abordou, é algo que pode ajudar a combater o tráfico de jogadores e suas manobras.

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