A casa do Barão de Drummond, depois fábrica confiança, hoje um supermercado, costumava apitar sempre às cinco horas. Há muito o supermercado cancelou o apito. 28, porém, ainda o escuta:
28 – “É isso aí peãozada, trabalha pra mais valia, a mobilidade social existe, em 12 vezes sem juros, com entrada só em janeiro.
No terceiro dia, sua filha resolve dar-lhe um banho.
Filha do 28 – “É difícil. Dois dias sem aparecer e olha o estado dele. Começar por onde se não dá sequer pra respirar?”
A amiga que acompanha a filha do 28 não entra no quarto. As mãos em concha no rosto por causa do odor.
28 – “Quem é você, douta manceba? O que ilude sua doçura são os olhos que possuís? Não aproximais demais de malsã companhia. Quereis comer merda?
28 agora ri, ri como um macaco, faz careta, mostra a língua, coça os culhões, come mais merda.
28 – “Diamante Negro, tá a fim?”
Filha do 28 – “Acho que nós duas sozinhas não conseguimos levá-lo pro banheiro. Quer tentar?”
Amiga – “Insuportável, Ângela. Não dá não.”
A filha do 28 começa a abrir a janela. 28 acerta-lhe um bolo de merda.
Filha do 28 – “Que isso, papai?!”
28 ri como um alucinado. Agora retira a dentadura e a mistura a um novo bolo de merda. Coloca o bolo bem em frente aos olhos.
28 – “Ri agora, filha da puta. Com merda na boca, tu não pode falar, o que dirá cacarejar, como faz toda noite quando eu quero dormir e você fala, fala, fala. Parece aquele vascaíno.
Filha do 28 – “Papai...”
28 – “Há vozes. Quem fala?”
Filha do 28 – “Papai...”
28 – “As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti. Como fede essa rosa. Isso é merda. Fala dentadura do caralho. É merda ou não é? Então me responde, direto, sem meias palavras: o futebol é catarse? Controle Social? Todo esporte moderno, de massa, de merda feia e suja como essa que escremento fétida tem um papel claramente definido. Sua função é manter a coesão social, através da sublimação de irracionalismos e do controle do tempo do não trabalho. A princípio, o futebol brasileiro foi importação de uma elite branca colonizada pra, posteriormente, ser apropriado pelo povo e se transformar no que é hoje: um símbolo da identidade nacional. Um percurso cheio de contradições, dialeticamente construído. Uma vez popular, o futebol deixaria de ser uma concessão, um recurso de controle, e ganharia autonomia. Do que o acusam? Ahn, diga-me douta manceba, aqui macerada nesta residência malsã? Ahn? quereis dizer-me sem antagonismo pelo odor que repulsa-me da fralda pútrida de aniagem legítima?”
A filha do 28 e a amiga saem do quarto. 28 não percebe
28 – “Possuís cândidos olhos pra ver beleza, aqui ei-la pura: a clareza do raciocínio. Penso simples. Isso é estética. Humor sem cinismo. Pragmatismo sem cooptação. Em pintura, acabar com a tradição corresponde sair dos meios, da linguagem. Abandonar tela, pincel, tintas, linha, plano,cor. Fazer como Duchamp, que apresentou um urinol que não precisava, pra ser feito, de nada daquilo. Retornar aos meios, ainda que sob linguagem radical, é retomar a tradição. Moderno só podia ser destruição. O fim da arte. Adiante que se fizesse outra coisa. Uma fralda de aniagem. Taxas elevadas de diabetes melitus. Pés inchados, cachaceiros molambos...
As duas voltam com um enfermeiro.
Filha do 28 – “Olha só o estado dele...”
Enfermeiro – “Minha senhora, o preço que eu dei não era pra encarar esse monte de merda. Onde começa o seu pai e termina a merda?”
Filha do 28 – “Tudo bem, moço, faz o que tem de fazer.”
O enfermeiro segura 28, que resiste. Fraco, entretanto, é levado pro banheiro, onde se recusa a ficar em pé. O banho tem de ser dado com 28 sentado dentro do box.
28 – “Já tive mulheres, de todas as cores...”
28 mal começa a cantar, o corpo tomba pra frente, fazendo-o bater com a testa no perfil de alumínio da porta, cortando-lhe a testa.
28 – “Maravilha, vinho tinto. Primeiro as moças, seu merda. Vinho, doutas mancebas? Essa nega quer me dá...”
A clínica geriátrica no Grajaú, após dois meses, atestara sua inépcia e , através do mais melífluo de seus vendedores,retorna a ligação para a filha do 28.
Vendedor – “Como vai a senhora? Espero encontrá-la bem na paz do Senhor. A senhora poderia vir aqui ainda hoje, mas não pode passar de hoje, é possível?
A cama de 28 só fizera aumentar-lhe as lacerações, agora em carne viva. As laterais da cama, em compensando vagabundo cheio de farpas, cortavam os braços e as pernas de 28. Suas fraldas geriátricas também não eram trocadas com frequência. O quarto, abafado, junto com mais três outros idosos, aumentava a temperatura, misturando-lhe suor, merda e sangue. Sob o Alzheimer, 28, num dia qualquer, num de seus momentos de lucidez, conseguiu burlar a vigilância e saiu pelo portão para a rua. Desceu a Itabaiana, alcançou a Teodoro da Silva. Iria atravessá-la com medo, mas o passo firme. Estava com muita fome, cansado daquelas canjas com remédio. Não tinha dinheiro. Só podia ser no restaurante popular no Maracanã. O medo era tanto que virara terror. 28 era ainda mais pútrido do que todos os pútridos que cruzavam a rua. Olhavam-no os olhos vermelhos, as feridas vermelhas, a fralda suja de merda que lhe escorria pelas pernas. 28 necessitava a morrinha de seus pares pútridos, mas livres. Não há fila no restaurante popular. Àquela hora, mais de duas da tarde, os operários esmolambados já haviam almoçado. Para na entrada do restaurante popular, dentro do Maracanã, sem corajem de pedir o favor.
Funcionário – “O que o senhor quer?”
28 permanece em silêncio.
Funcionário – “Está com fome? Não tem 1 real? É isso?”
28 continua em silêncio.
Funcionário – “Pode entrar.”
28 entra, pega a bandeja e é servido. São todos leprosos. O restaurante popular é a divisão social do Estado em que os leprosos foram incorporados em programas de ressocialização.
28 está fraco e quase derruba a bandeja, mas um dos leprosos é mais ágil e consegue ajudá-lo. Leva a bandeja até às mesas.
28 – “Obrigado, mas estou sem um puto.”
O leproso nem sequer responde.
28 encontra várias unhas pela metade na salada. Embaixo do stick de frango, encontra um dedo com pus, já escuro, de podre. Prova. Sente o gosto de torresmo. Decide amassá-lo e misturá-lo ao feijão com arroz.
28 presolve prestar atenção num camarada, na fila, a bandeja na mão, que não para de falar.
Camarada – “Ontem, pouco antes de dormir, havia pensado sobre o que, de fato, me interessa. Não demorei pra concluir que a revolução não passa de uma experiência estética. Um modo formal de elaborar a realidade, na verdade um meio de tornar a vida mais divertida, passar o tempo. Minha esperança de revolução não passa da vontade de exprimi-la. O resultado é apenas o que se vê. E não pretendo nivelar-me ao trabalhador, aos andrajos, cuja medida de Estado, ao tomarem o poder, será a generalização do churrasco na laje e o piquenique na Quinta.”
28 atira-lhe com raiva a bandeja de plástico. Mas, não o acerta. Acaba acertando um outro leproso, decepando-lhe o resto do toco do braço. Ao mesmo tempo, não se sente bem. Não é medo. Sentira-se seguro ali, em meio aos leprosos. A vontade de vomitar agora é substituída, primeiro pela vontade de defecar, agora um desarranjo que se espalha líquido pelo banco onde está sentado. Alguns estropiados, mais andrajosos, atiram-se com sofreguidão, querem recolher a pasta líquida pra comer depois. 28 escorrega na própria merda, cai, levanta, cai de novo, mas levanta mais uma vez, pronto pra ir pra roleta e chegar à Radial.
Lá fora, 28 olha o Maracanã e pensa:
"Quando vão reabrir essa merda?"
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