quarta-feira, 4 de agosto de 2010

"Cada Garrafa"


Por Jeremias Machado

Acompanho o blog e resolvi colaborar. Sou rubro-negro e a história que segue aconteceu comigo. Os nomes (exceto o meu), bem como alguns dados e fatos foram adaptados, outros cortados, mas permanece o sentido: a perda de função de um indivíduo que nem sequer conserva a identidade. Ficou só o Flamengo.


Numa estrada vicinal à Amaral Peixoto, a caminho de uma das praias da Região dos Lagos onde eu iria comprar uma casa, o carburador do meu fusca, de repente, começou a ratear, obrigando-me a parar. Estávamos em junho, era por volta da meia-noite, e a baixa temporada que faz da região um oásis maravilhoso nada me permitia senão procurar ajuda na casa do outro lado da pista. Ainda relutei, parado alguns instantes ao lado do triângulo de sinalização que armara, à espera da passagem de algum carro. Sem chance, desisti. Dirigi-me, então, àquela casa, aliás, a única em que parecia ter gente. E foi ao me aproximar do portão de réguas de madeira com o braço esquerdo estendido em direção à campainha, que Renata apareceu dentro de uma camisola preta

- Boa noite, filha, e me desculpe. Mas você não tem ninguém aí que possa me dar uma força ali com o fusca?

Agora que encostara no portão, a luz do telheiro iluminando o seu corpo, pude ver como era : mais ou menos um metro e setenta, coxas grossas, canelas grossas, cabelos lisos e escorridos, caindo sobre dois seios túmidos em forma de cálices, prontos para serem sorvidos. Não podia dizer-lhe a idade, qualquer uma entre trinta e quarenta e cinco anos

- Quem gostaria?

"Gostosa, mas maluca" – pensei – "Que papo é esse de 'quem gostaria?” - Meu nome é Jeremias e eu...

- Jeremias, o profeta?


Deitamos sobre a grama.


Um carro passou devagar. O farol alto, através da cerca de arame farpado, que nos separava da pista, evidenciava o insólito de nossa situação: um casal praticamente nu, de madrugada, na frente do terreno de uma casa com o portão aberto.

Era melhor levá-la para dentro; depois eu iria ver o que fazer com o fusca. Com habilidade, para não acordá-la, subi a calça, apertei o cinto e levantei. Procurei levá-la com cuidado até a casa que ficava no fundo do terreno. Como eu suspeitara, não havia ninguém. Então, fui entrando: atravessei primeiro um cômodo grande bastante iluminado ( pelo menos assim me parecia, no contraste da escuridão daquela noite de junho e do resto da casa, que, aliás, era pequena ), onde funcionava uma espécie de oficina, com inúmeras ferramentas penduradas em pregos em tábuas de madeira presas nas paredes: vários tipos de formão, de chaves de fenda, alicates, martelos de ferro e de borracha , uma miríade de pequenos objetos de ferro ou de aço, que não conseguia identificar. A quantidade de serragem no chão e pedaços de madeira cortada em cima de uma bancada, também de madeira, indicavam que a oficina estava em uso. Ela devia morar com alguém, mas não me detive nesse pensamento. Passei pela cozinha e pela sala pequenas, chegando no estreito corredor que dava acesso a dois quartos e ao único banheiro da casa. A ausência de laje sob o telhado espalhava por sobre as paredes internas a iluminação da oficina, dispensando o esforço de ter de procurar os interruptores. Até ali, como disse, nenhum problema, a não ser o de escolher o quarto, pois não sabia onde deitá-la: em ambos a mesma cama de casal e o mesmo armário, apenas. Escolhi o quarto da esquerda, o que dava para a fachada: abriria a janela, ventilaria a morrinha com o vento filtrado entre as árvores do terreno.

O ar purificado e fino correu pelo corpo de Renata, eriçando-lhe os pelos. Deitei-a na cama, o rosto virado para a janela, de modo que arejasse o escorrimento do nariz; saí do quarto, pensando no fusca. Que se dane, quase duas da madrugada, lugar isolado e com pouco movimento. Além disso, eu queria relaxar, acalmar a excitação, que me despertara a vontade intensa de beber, depois de tanto tempo.

Na penumbra da sala, uma rede rubro-negra, pendente de ganchos nas paredes.

Havia na sala pequena, além da rede onde eu me deitara, uma mesa transbordando de papéis, com vários vidros de tinta em volta de uma luminária de madeira, na forma de arco, simulando uma cópia de desenho italiano. A oficina, as camas e os armários iguais, esse arremedo de luminária – evidente que o cara que morava aqui era marceneiro. Mas um marceneiro pretensioso, cheio de referências. Apesar da preguiça, levantei da rede, a fim de examinar melhor o que havia sobre a mesa. Acendi a luminária e, misturado a esboços de móveis, charges e caricaturas indecifráveis, vi o que deviam ser rascunhos de um texto, um conto curto, que a letra de forma, desenhada em folhas bem organizadas, apontava estar concluído. “Cada Garrafa” era o título:

“A noite escorre uma insônia lenta, tapando à gaze um passado que beira à hemorragia. E o álcool é um placebo, segurando a onda que me detona no fluxo sobre o sangue, quer lubrificante como o que estabiliza, quer pólvora de combustão instantânea, indomável ao controle por veredas tão expostas como as que em mim encontram para espalhar-se.

Álcool vem do árabe, mas a cachaça, que é brasileira, é feminina, prendendo as pernas, sedutora na leveza com que me conduz. O corpo fixo pela cabeça, já rendida. Não dói o corpo satisfeito. A cabeça líquida, nas curvas em que se concentra: um ambiente sem raízes que eu cultivo para o sexo sem hora, a qualquer hora, brinquedo, a escultura, a liberdade, a perspectiva de aroma eucalipto, a mangueira a um passo, bastando a vontade para o olhar livre, sem obstáculos de volumes ou vizinhos.

Cada garrafa é um convite sem cerimônia ao exercício de catarses; à cabeça as vísceras, espremendo-as contra o cérebro, forçando a boca, que não consegue vomitar. A cabeça suspensa. Um pouco da cachaça, como conta-gotas. Antes o vômito do alívio que me viabilizava, numa torneira aberta em ligação direta com o estômago, levando miojo, biscoito de polvilho, até secar. Os dias seguindo, a rede, “Doors”, “Nirvana”, “Led Zeppelin”, o chão da mangueira, sem força.

Talvez escreva para adiar o gole, mas não adianta, na espreita dum bom negócio, escroto metido à artista. Minha arte não passa de artesanato. Soa falso como bom gosto, que, de resto, não existe. Ou é arte, que só pode vir da necessidade, ou não passa de afetação.

E quanto à marcenaria? Meu cunhado, que foi meu sócio, é quem tinha razão: se marcenaria resolvesse a vida, Jesus não a teria abandonado para fundar o cristianismo. Logo eu, que trabalhei naquele carnaval. Cliente filho-da-puta: não apareceu, nem deu satisfação. Veio a quarta de cinzas. Nada.

“Da última vez em que aí estive (a quarta, desde a instalação dos lambris), um almoço, agora com malaios, mais uma vez impediu que nos entendêssemos. Primeiro, quero relembrar o acordo. Como marceneiro, fui contratado para executar projeto que me foi dado por sua filha, arquiteta, em janeiro – em função do qual prontamente elaborei orçamentos (material/mão-de-obra), não me cabendo desde logo qualquer responsabilidade por erros que não fossem absolutamente meus. Depois uma “estrutura mais profissional” não recomeçaria do zero. Lembre-se da escrivaninha da secretária. Repare como o seu desenho em curva levou-o a reconhecer que um novo acordo se impunha. Resultado: o material continuava o mesmo, mas a mão-de-obra havia mudado. E o novo acordo? Esqueceu-se de que o princípio da qualidade costuma valer mais do que o da quantidade, na execução de peças cada qual mais complexa?

P.S. – Quanto a sua mesa, minha obrigação seria acabá-la nos moldes de como foi projetada. Já a cortei, transformando-a em outro equipamento – distinto, portanto, do combinado. Isso é outro serviço e você vai me pagar por ele.”


Antes de sair, dei uma olhada em renata, que dormia tranquila. Só, então, percebi uma espécie de baixo-relevo, razoavelmente bem entalhado, em madeira escura, pendente de um dos ganchos da rede rubro-negra. Aproximei-me:

"Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior
Andrade, Adílio e

ZICO

Tita, Nunes e Lico.
"



Nenhum comentário:

Postar um comentário