Professor do Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o sociólogo Mauricio Murad é coordenador do Núcleo de Sociologia do Futebol, fundado em maio de l990. Nestes vinte anos de existência, Murad e seus colegas desenvolveram algumas linhas de pesquisa, bem como procuraram organizar um importante acervo documental sobre a temática do futebol. Além disso, o Núcleo editou cinco números da revista Pesquisa de Campo, que tinha como foco publicar artigos e outras produções sobre futebol. Nesta entrevista, o professor Mauricio Murad aborda o processo de criação do Núcleo e da revista, bem como alguns dos temas que vem pesquisando nas duas últimas décadas.
Conte-nos como foi a sua formação em Ciências Sociais no contexto do início da década de 1970.
Foi no período mais sombrio da sombria ditadura militar, na conjuntura do governo Médici, o mais violento de todos os violentos governos da ditadura militar. Uma época muito difícil, de brutal repressão, censura, tortura, entreguismo das riquezas nacionais ao grande capital estrangeiro, sobretudo dos Estados Unidos. A universidade brasileira foi duramente agredida pela ditadura e a minha geração resistiu como pode. Houve muitas prisões e expulsões pelo decreto-lei 477, que era o A.I.5 das universidades. Foi um período de lutas, de resistências, de combates, de algumas poucas vitórias e muitas derrotas.
Como surgiu o interesse pela Sociologia do Esporte entre o período de graduação e a formação do Núcleo de Sociologia do Futebol.
Em 1971, ainda com estudante, assisti uma palestra ótima do Anatol Rosenfeld, no IFCS da UFRJ, onde eu fazia o curso de Ciências Sociais. Nela, o Anatol deu uma informação que foi decisiva para mim: na Universidade de Colonia, na Alemanha, havia um setor específico das ciências sociais para estudar os esportes em geral e particularmente o futebol. Conversamos ao final da conferência e nos encontramos depois, por duas ou três vezes. Saí dessa palestra com a cabeça feita: por que o Brasil não tem isso? Claro que naquela conjuntura o futebol era usado politicamente pela ditadura, como foi o caso da Copa de 1970, e por isso era mal visto entre os intelectuais de esquerda. Sempre desconfiei desse papo de “ópio do povo”, mas era o que prevalecia. Então, a idéia ficou adormecida em mim, até que em maio de 1990, muito depois, quando já era professor do Departamento de Ciências Sociais da UERJ, propus a criação, consegui aprovar e coordenei por 10 anos o Núcleo de Sociologia do Futebol. Foi um instante único para a UERJ e marcou um pioneirismo na universidade brasileira, como um todo. Articulamos-nos dentro e fora da universidade, dentro e fora das ciências sociais, dentro e fora do ambiente específico do futebol, incluindo a música, o cinema, a literatura, as artes plásticas etc.
Como foi a criação do Núcleo de Sociologia do Futebol?
Iniciamos organizando um arquivo de jornais e revistas, que depois foi ampliado com documentos, livros raros e doações de variadas origens. Estruturamos também uma audioteca e uma videoteca com gravações de inúmeros depoimentos, de jogadores, ex-jogadores, pesquisadores, artistas, jornalistas, árbitros, dirigentes, torcedores. Integramos o trabalho que realizávamos na UERJ com os meios de comunicação, divulgando o projeto de mostrar o futebol como patrimônio cultural, como elemento central de nossas identidades coletivas. Em outras palavras: ver, sentir e estudar o futebol, para além das “quatro-linhas”, o futebol como fenômeno de massas, como cultura coletiva.
Conjuntamente com a criação do Núcleo foi implantada a disciplina de Sociologia do Futebol que conta atualmente com 11 turmas concluídas. Como você traça o perfil dos alunos que fizeram a disciplina? É possível traçar uma linha do tempo teórica a partir das leituras propostas no curso?
O Núcleo foi criado em maio de 1990 e a disciplina eletiva Sociologia do Futebol foi implantada a partir de junho de 1994, na conjuntura da Copa do Mundo dos EUA, a copa do nosso tetracampeonato mundial de futebol. Algumas centenas de alunos e alunas (mais alunas do que alunos: interessante questão de gênero está contida aqui...) passaram por essa disciplina, que foi um sucesso. Fomos obrigados a oferecê-la quase que em todos os semestres, direto, o que não é habitual em se tratando de disciplinas eletivas. Alunos e alunas de Ciências Sociais, História, Educação Física, Direito (por causa do direito esportivo), Psicologia, Geografia, Nutrição, Pedagogia, alunos de quase todos os períodos, idades e com interesses bastante variados. É possível, sim, traçar uma linha do tempo a partir das leituras do curso. Fizemos uma proposta de periodização da história social do futebol brasileiro, que começou em 1894, quando a modalidade chegou ao Brasil, até os dias de hoje, passando por diversas fases: a da exclusão social e racial, a implantação do profissionalismo, a das conquistas clubísticas (como o Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha) e especificamente da Seleção Brasileira.
Também a partir do Núcleo surgiu a revista Pesquisa de Campo, um periódico destinado aos assuntos sobre o esporte, em especial, sobre futebol. Como foi a experiência da revista e por qual motivo ela deixou de ser editada?
A revista Pesquisa de Campo, considerada por muitos estudiosos um marco na história da implantação dos estudos do futebol, nos cursos de Ciências Sociais no Brasil, entrou em circulação, também, a partir de junho de 1994. Fizemos um número zero e chegamos até o número cinco, quando ficou impossível, lamentavelmente, seguir em frente, por causa da falta de financiamento ao periódico. Foi uma pena, porque a revista marcou uma época, deixou uma tradição e uma boa lembrança. Ainda hoje em dia é possível encontrarmos referências a ela em dissertações de mestrado e teses de doutorado, sempre indicada como uma publicação pioneira.
Até recentemente, havia muito preconceito em relação ao futebol ser um objeto de estudo da academia. Contudo, podemos dizer que hoje isso já diminuiu. Como você lidou com isso desde suas primeiras pesquisas?
Ainda há preconceitos, sim, em relação aos estudos sociológicos, antropológicos, históricos à volta desse fenômeno social multifacetado, que é o futebol, esse “fato social total”, para usarmos uma categoria de Marcel Mauss. Todavia, é preciso dizer que melhorou muito. Hoje é difícil alguém ousar dizer que é alienação estudarmos o futebol, este “tema menor”. Mesmo quem acha, e ainda tem gente que acha, fica meio sem graça e não tem muita coragem de assumir. No início foi muito complicado, porque tivemos que enfrentar muitos obstáculos epistemológicos e político-ideológicos. Foi um longo processo de debates teóricos e metodológicos, convencimentos, parcerias, aumento da massa crítica e incorporação de nomes importantes de outros setores da vida cultural brasileira e estrangeira, para ajudar a remover esse entulho autoritário contra os temas da chamada “cultura popular”. Muitas vezes tínhamos que fingir não escutar as ironias e tentar provar com bons e consistentes trabalhos que estávamos no caminho certo. Os debates públicos, em seminários e congressos, também foram fundamentais.
(amanhã a segunda parte)
SRN
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