domingo, 21 de novembro de 2010

Menisco

Não foi nem e-mail. E o correio ainda esculacha, com o tempo que levou pra chegar.
Quem escreveu e mandou é porque quer vê-la divulgada. Vou titular como Menisco.

SRN
Máximo


Menisco

Da Baía de Guanabara, tão impotente, tão adicta, sem diagnóstico do quanto já se viciara, ao largo da oitava circunscrição da comarca da Guanabara, quarta zona da freguesia do Engenho Velho, Tijuca, onde se certifica que às folhas cento e setenta e quatro, do livro quinhentos e oitenta e dois, sob o número cento e setenta e oito mil cento e treze, consta o assentamento de Gélcio Machado Frieza...

Ex-jogador, alcoolista, no fundo, um moralista.

Desta prostituta, cuida do seu leito só a cafetina, a velha Cantareira e seu oficiar persistente, vazando século; e à indiferença do velho que dorme, do imbecil que berra ao celular e da jovem de uniforme de executiva que joga pela janela o maço de Carlton vazio, pego a botija e tomo um gole...

Fui com os dois pés no alto, uma voadora no meio do joelho do dez. A ordem pra quebrar eu a cumpri à risca, o beque deles veio seco, o dedo na minha cara. Cuspi na cara dele e levei um tapa...

Apagara, soube depois que  ela ligara desesperada do quarto para a gerência do motel, que manda dois sujeitos virem buscar-me.

Minhas pernas alçadas em mãos interessadas em jogar fora o incômodo.
 
- E se esse maluco morre aqui dentro?

Elevador. Táxi. Souza Aguiar. O "rewind" pára bruscamente, pára na chapa de alumínio em que me colocam. Tiram a calça, havia oitenta reais na carteira. Apago. Para acordar entubado pelo nariz, soro na veia, uma dor indescritível no braço. A emergência se expõe. Sua sexta-feira vaza os intestinos pútridos da cidade. Os meus, frouxos, expelem da lavagem vísceras sobre a comadre. O desespero de minha mãe. A madrugada agora de sábado é indefectível. A demanda dispensa sutilezas e não há lençol suficiente para os detritos que chegam. Minha mãe retira o relógio do meu pulso. Peço a ela, a voz pastosa, que procure meus documentos. O esforço que faço para falar me apaga. Cadeira de rodas, berros de alumínio? A equipe atende outro fodido na maca quase encostada a minha...

Tinha ficado sem clube, já quase em fim de carreira. Andava inclinado a aceitar a proposta de um jornalista para uma matéria de uma revista de futebol. Rolaria uma grana, pela merda em que me encontrava quebrava um galho, eu teria de contar tudo, no detalhe, admitir o envolvimento de certos nomes, a novidade nem tão novidade do nome do técnico, o dirigente bicheiro que dizem (era o que rolava lá) havia comprado o título de um carioca não sei exatamente em qual ano, as "bolas" que nos davam como "vitaminas”, os olhos esbugalhando, a disposição de um miúra, no caso do nosso centroavante, um crioulo que mais parecia o País, goleiro do América que começara comigo, fazia o cara querer o fígado do beque...

... a barca se aninha na baía, impele-se sobre o seu leito, que a embala como um colo doce. Vem a vontade de mergulhar, me atirar àquela água podre, mas bonita. Tomo mais um gole, curtindo a paz quente, observando as correntes do passadiço,  a impedirem o mergulho redentor. Estou chegando na Praça XV, mas o que enxergo é o Mississipi, fazendas de cultivo de algodão, lamentos nostálgicos de negras perfeitas, da beleza da mãe de uma  filha que fiz por lá, numa excursão dessas...

A entidade vinha de ser criada. Na verdade só uma troca de letras do "d" para o "f". Nela tinha muito trânsito o meu dirigente, amigo da nova diretoria,  e o negócio foi que a liga de futebol, na mão de um "empresário" americano, ligado aos cassinos de Vegas e a apostas de corridas de cachorro, que eu nem sabia que existia, mas, que lá, na América, faz sucesso, rolando muita grana, tentava levantar de novo o futebol, parado desde o fim da era Pelé.

Meu dirigente foi designado chefe da delegação e o nosso clube o representante do futebol brasileiro, então apenas tricampeão do mundo. Fizemos jogos de tudo quanto foi jeito, em campos de beisebol muito mal adaptados, em campos terríveis, em fazendas particulares, provavelmente improvisados sobre plantações de arroz, com a grama misturada, enlameada ao barro.

Com a arbitragem um fato curioso, como uma antecipação do tempo. Nosso time talvez tenha sido o primeiro dos brasileiros a ter uma partida apitada e bandeirada por uma juíza e por bandeirinhas femininas. É que nos EUA, como pode ser visto depois, pelo seu desempenho em campeonatos de futebol feminino internacionais, o futebol era basicamente praticado nas escolas e por meninas.

Um blues de John Lee Hooker começa a tocar na cabeça e me sinto transportado na mesma barca que parece buscar uma imagem que se perdeu e recordar a semelhança das embarcações. É que dizem que a barca que me leva e que sempre me pareceu tão carioca tem inspiração nas antigas embarcações do Mississipi. Ou são as mesmas, não tenho  certeza. O plástico da aguardente provoca de novo minha mão, enquanto Hooker, cantando a liberdade, acentua o rascante da voz, ninguém não escute a impossibilidade sem ênfase...

... a perna do dez se fletiu em arco. A carga que fiz sobre o joelho, cuja dor se afigurava impossível de calcular. Eu era um pobre-diabo,  mero títere, agora aparvalhado menos por medo da cara feia do beque, do que pelo que não sei bem por que, até hoje as mesmas palavras, que balbucio agora, que  vomito sempre que bebo, que repetia, autômato, naquele instante...

"Me mandaram quebrar, me mandaram quebrar..."

...de vários materiais consistem os detritos que bóiam defronte dos seus olhos e cobrem a baía, forcejando por asfixiá-la. Pedaços de Eucatex, latas de leite condensado, pequenas, latas maiores de azeite e de óleo de cozinha, cascos de cerveja, garrafas de refrigerantes, de vidro, até do uísque que matou Bonham, cujo solo, em "Bonzo's Montreux", vai substituindo Hooker na cabeça, à medida que a barca manobra para atracar...

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