Outro dia fui à UERJ, vindo da Abaeté, claudicante, na adaptação à muleta. Tentei arriscar as rampas, mas, sem chance. Os calos debaixo do braço uma festa. Minha dificuldade com a academia, ao contrário da muleta, parece uma inadaptação, vem ficando bem nítida e está com toda certeza na falta do gosto de esquina. Talvez a vaga que um dia poderia ocupar, num suposto vestibular depois de velho - e agora perneta - poderia ser melhor usada, e os corredores da UERJ nem as suas rampas, tampouco suas salas, são os paralelepípedos da Senador Soares, na continuação da rua dos Artistas. História não é a crônica de uma memória em recuperação. Pode ser que minha compreensão só alcance a complexidade que se apresente com uma clareza evidente. E é uma maravilha o conforto dos clássicos, claros, o arcabouço teórico ganhando estrutura como se fosse pela primeira vez. Agora compreendam o prazer de ver um texto, em meio aos luminares acadêmicos, na criação muito inteligente, e divertida, numa entrevista inventada com as próprias palavras de Pereira Passos.
SRN
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Revista Rio de Janeiro, n. 10 , maio-ago. 2003 250
ENTREVISTA / Pereira Passos por ele mesmo*
Por Antonio Edmilson Martins Rodrigues e André Nunes de Azevedo
* O que será lido a seguir resultou de um trabalho de mapeamento dos arquivos do Prefeito Pereira Passos no Museu da República e da documentação oficial de seu governo na cidade com ênfase nos materiais produzidos por sua própria pena. É uma tentativa de exprimir as principais opiniões de Passos a respeito de sua obra na cidade e apresentar as principais características de sua formação. Compreende, desse modo, uma “interpretação dirigida” que envolve questões suscitadas pela própria leitura da documentação. Nossa intenção é, nos próximos números, poder apresentar o “outro lado” e produzir o contraponto.
Ao longo de sua história, o Rio de Janeiro foi definido por uma série de metáforas: “cidade rebelde, no século XVII”; “cidade-corte”, no início do século XIX; “cidade pestilenta”, na segunda metade do mesmo século; “cidade maravilhosa”, no início do século XX; “cidade-nação”, durante o Estado Novo; e, nos dias atuais, a sua mais trágica metáfora, a de “cidade da violência”. Esta é a maior expressão simbólica da crise de civilidade urbana pela qual passa o Rio de Janeiro. Fortemente abalado em sua capitalidade desde a perda de seu status de capital e recebendo duros golpes, tais como os arbítrios da ditadura militar brasileira e a fusão com o interior do estado, o Rio de Janeiro vive uma grave crise, perdendo terreno no campo da cultura e da ação política para outras cidades brasileiras. Em meio a essa constatação, a Revista Rio de Janeiro resolveu “enviar ao passado" dois historiadores, a fim de entrevistar o ex-prefeito da capital federal, Francisco Pereira Passos. A entrevista ocorreu no ano de 1913, último da vida do Alcaide, pouco antes de embarcar em viagem à Europa, onde viria a falecer em mares portugueses, próximo à Ilha da Madeira.
RRJ – Senhor Passos, gostaríamos de saber sobre sua origem.
PP – Nasci em São João do Príncipe, uma cidadezinha do Vale do Paraíba fluminense, em 29 de agosto de 1836, na fazenda do Bálsamo, de propriedade de meu pai, Antônio Pereira Passos. Meu pai era um proprietário agrícola, um senhor escravista que plantava café, milho, feijão e cana-de-açúcar.
RRJ – É verdade que seu pai tinha título de nobreza?
PP – Isso aconteceu no final de sua vida, seis anos antes de seu falecimento, que ocorreu em 1866. Ele recebeu do Imperador D. Pedro II o título de Barão de Mangaratiba, um agrado aos cafeicultores da região, o que na época era muito comum. No entanto, eu nunca gostei muito de títulos, pois sempre acreditei no trabalho e na capacidade empreendedora do homem. Foi por isso que na década de oitenta rejeitei o título de Barão do Corcovado com o qual o Imperador quis me agraciar após o meu empreendimento ferroviário na montanha do mesmo nome. Pela mesma razão, eu já havia rejeitado um casal de escravos na ocasião do meu casamento, nos anos 60.
RRJ – E quanto a sua formação?
PP – Como era comum nas famílias de fazendeiros na época, meus primeiros estudos foram orientados por preceptores, dentro da própria fazenda. Depois, em 1850, vim ao Rio de Janeiro completar os meus estudos preparatórios para a faculdade. O fiz no Colégio São Pedro de Alcântara, administrado pelos padres Paiva, um dos melhores da cidade, onde também estudaram o Marechal Floriano Peixoto e o Dr. Oswaldo Cruz. Concluída esta etapa, ingressei na Escola Militar da Corte, em 1853, na qual me formei engenheiro civil, em dezembro de 1856. Após estar formado, aproveitei a influência do meu pai na Corte e consegui ser nomeado adido de 3a classe na legação do Brasil na França. Fiquei alguns anos em Paris, onde completei a minha formação na École de Ponts et Chaussés e acompanhei uma das etapas da reforma urbana conduzida pelo engenheiro Alphand, durante a gestão do Prefeito de Paris, Eugéne Haussmann. Depois, voltei ao Brasil e iniciei a minha carreira de engenheiro trabalhando para o Império.
RRJ – Como o senhor percebe as mudanças na engenharia nacional, desde a sua formação, nos anos de 1850, até o início do século XX?
PP – Creio que a minha geração de engenheiros se formou em um Brasil com um nível de desenvolvimento material ainda muito incipiente. A cidade do Rio de Janeiro, o maior pólo de atração de obras do país, apresentava um baixo nível de desenvolvimento de sua infra-estrutura urbana, um quadro que foi revertendo-se rapidamente a partir do último quartel dos oitocentos. Ainda, a minha geração de engenheiros encontrava-se submetida à formação militar, a uma filosofia de formação de engenheiros como funcionários públicos do Império, o que, aliás, era o destino de quase todos os poucos engenheiros que se formavam no Brasil dos anos 50 e 60. Já em maior número, a geração de engenheiros que se formou no último quartel do século XIX vivenciou uma realidade distinta, era uma outra cidade. O Rio de Janeiro crescia, sua sociedade complexificava-se, cresciam também as camadas médias urbanas e com elas uma maior demanda por obras de infra-estrutura, que cresceram muito na urbe neste último quartel de século. Com isso, os engenheiros, sobretudo os engenheiros-empresários, organizaram-se em torno de seus interesses privados, como ocorreu com a fundação do Clube de Engenharia, em 1880. Eles passaram a assumir uma série de concessões de obras estatais que anteriormente ficavam a cargo, quase que exclusivamente, do capital internacional. Ademais, esta geração formou-se na Escola Politécnica, na qual o ensino da engenharia já era controlado pelos civis, tanto na direção da Escola, quanto na sua subordinação política que, desde 1874, passou do Ministério da Guerra ao Ministério do Império. Ao contrário da minha geração, mais restrita ao funcionalismo público Imperial, esta foi uma geração que atuou sobremaneira no setor privado da engenharia. Diferentemente da minha geração de engenheiros, que trabalhou tendo como meta maior a ser alcançada a perspectiva de construir uma civilização nos trópicos, que era um projeto do Império, a geração de fins do século XIX, que atuou sobretudo durante o período da República, teve como valor maior a ser atingido a promoção de um progresso que era pensado fundamentalmente como desenvolvimento material. Essa geração considerou que uma vez estabelecido o progresso material, a civilização viria como seu corolário lógico, necessário. A minha geração nunca pensou assim. No Império era diferente, não passamos, por exemplo, pela experiência do encilhamento e o governo era muito cioso quanto a uma série de referências morais.
RRJ – E sobre o abortado projeto de reforma urbana da Comissão de Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro que o senhor presidiu entre 1874 e 1876? Por que o senhor considera que ele não foi executado?
PP – Motivo claro: falta de dinheiro do Estado e falta de interesse da iniciativa privada, pois o projeto demandaria um investimento altíssimo sem garantias de retorno do capital investido. Mas foi uma pena que o projeto não tenha saído da gaveta, pois, no primeiro relatório de 1875, prevíamos a construção de uma grande avenida com curvas, ligando o centro da cidade até as regiões suburbanas do Andaraí e de Vila Isabel, este último um bairro que pensamos como modelo para o subúrbio do Rio. Lá, projetamos a construção de casas para operários com jardins à frente, uma universidade, um jardim zoológico e um horto botânico, ambos ligados à pesquisa científica da universidade. No segundo relatório, fruto de uma série de críticas ao precedente, no qual decidimos não intervir no centro urbano, fomos compelidos a reformar a cidade velha. Em meio a forte pressão para que derrubássemos os morros do Castelo e de Santo Antônio, que vários médicos e engenheiros consideravam propiciadores de miasmas por obstarem a circulação do ar, decidimos manter elementos naturais da urbe. Para isso, projetamos uma avenida ligando o setor norte ao setor sul do centro da cidade e outra ligando o leste ao oeste, da Praça XV de Novembro até o sopé do morro de Santo Antônio, o que nos possibilitaria resolver o problema dos miasmas pela captação das brisas oceânicas em três direções. Assim, antecipamos a trajetória da Avenida Central, projetada pelo Ministro Lauro Müller no início da Grande Reforma Urbana de 1903-1906. Antecipamos também a construção da Avenida Beira-Mar que, no mais, era até mais completa do que a que construímos quando fui Prefeito, pois, no projeto de 1876, ela ligaria o bairro de São Cristóvão até Botafogo, passando pelo centro da cidade, seguindo o contorno do litoral com as suas sinuosidades.
RRJ – A quem o senhor julga que caberia a atribuição de cuidar da cidade, de seu planejamento social, de sua infra-estrutura? Aos médicos ou aos engenheiros?
PP – Durante o Império, esta tarefa esteve mais nas mãos dos médicos. No entanto, na República, em função da organização do Clube de Engenharia e de sua capacidade de se aproximar do Estado e de fazer valer os seus pontos de vista, esta função passou, claramente, a ser dos engenheiros, o que pôde ser verificado pelo papel destacado que este tipo de profissional teve na Grande Reforma Urbana de 1903-1906. Uma vez, em uma das reuniões do Clube de Engenharia, um dos sócios do clube procurou definir o papel de ambos os profissionais nos processos de intervenção urbana. Ele disse que aos médicos caberia diagnosticar os problemas urbanos, mas que a cura dos mesmos caberia aos engenheiros.
RRJ – Voltando à questão da sua formação, qual teria sido a importância de o senhor ter participado da reforma urbana de Haussmann? O senhor se consideraria um engenheiro haussmanniano ?
PP – Sem dúvida, a reforma urbana promovida pelo prefeito Haussmann em Paris me influenciou, como a maioria dos urbanistas do Ocidente até a virada do século. No entanto, a reforma urbana promovida por Haussmann foi-me muito mais uma referência do que um modelo a ser seguido. Para constatar isto, basta comparar as plantas e a carta cadastral da minha reforma urbana com as da reforma urbana Haussmann. Uma das maiores características da reforma Haussmann foram as avenidas circulares que deslocavam o trânsito do centro da cidade. Na minha reforma, de maneira diversa, eu criei três ligações do centro urbano com o subúrbio do Rio de Janeiro. Veja os round points, tão famosos e característicos da reforma Haussmann, não fiz nenhum no Rio de Janeiro. A minha intervenção urbana foi muito mais discreta, não teve a grandiloqüência característica da reforma Haussmann, cheia de perspectivas que realçavam a monumentalidade de Paris. Entretanto, sem dúvida, alguns princípios da reforma parisiense me influenciaram, como a valorização da alta cultura e da tradição local.
Acho que sou muito pouco haussmanniano para os padrões de gosto da elite carioca. Engraçado que quando o Imperador D. Pedro II recusou os meus relatórios da Comissão de Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro. Ele o fez alegando que eram haussmannizantes, um belo álibe para quem não tinha condições de executar uma reforma urbana para o qual tinha pago os estudos. Depois até virou moda no Rio de Janeiro chamar os prefeitos da cidade de Haussmann ou haussmannizadores, pois, assim, a imprensa carioca já vinha fazendo com alguns alcaides que me precederam.
RRJ – Agora, gostaríamos de falar sobre aquilo que mais lhe notabilizou, a reforma urbana do Rio de Janeiro que o senhor realizou no início do século XX, como prefeito da cidade. Qual foi o seu maior objetivo nesta reforma?
PP – Sem dúvida, fazer do Rio de Janeiro uma cidade civilizada.
RRJ – E o que isto significa para o senhor?
PP – A meu juízo a emergência das massas operárias nas grandes urbes é o maior problema das cidade modernas. Elas vivem sem dignidade, o que ameaça o equilíbrio de toda a sociedade, compromete a civilidade urbana e milita contra a civilização. Para mim, uma cidade civilizada supõe conferir dignidade habitacional ao operariado, educá-lo, estimular-lhe o apreço pela cultura e o gosto do belo, condições indispensáveis da civilidade urbana e da civilização. Considero fundamental que o operariado desenvolva-se com o gosto pela beleza e a preservação urbana, com ruas e habitações dignas, bem urbanizadas, só assim estes modestos obreiros da civilização poderão integrar-se de fato à sociedade. Algo que me faria muito gosto é que os operários do Rio de Janeiro usassem mais o centro urbano após a reformulação que nele executei, pois aquele espaço, como encontrava-se antes, era um desestímulo à urbanidade. Agora, ao contrário, tornou-se um estímulo a ela, por isso, seria importante a presença não só dos operários, mas de toda a população no centro da cidade. Assim, todos poderão levar, dentro de si, aos seus bairros, um modelo de civilidade urbana.
RRJ – De quais instrumentos o senhor lançou mão para promover a civilização no Rio de Janeiro?
PP – Vários. Mas posso destacar os três projetos de vilas operárias que desenvolvi, duas junto ao centro da cidade, outra também próximo dele, na Glória; a proibição de “maus usos” da cidade; a transferência de escolas do centro da cidade para o subúrbio e a inauguração de novas escolas nestes bairros, onde maior é a necessidade delas; o fomento à educação estética do carioca, através do Teatro Municipal, e a integração de toda a cidade ao seu centro urbano, lugar exemplar de sua civilização.
RRJ – No seu entendimento, qual seria o papel da classe operária na cidade?
PP – Como eu já havia dito em duas ocasiões nas minhas mensagens à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, eles são os modestos, mas valiosos obreiros da civilização, ou seja, são aqueles que cuidam da parte operacional desta. Como o Teatro Municipal seria erguido sem os operários? É claro que a contribuição que eles dão ao desenvolvimento da civilização é mais modesta que a dos artistas, cientistas, intelectuais e engenheiros, mas isso não quer dizer que eles não participem com contribuição alguma. Um operariado com disciplina para o trabalho e que seja governado por uma elite de sábios é muito valioso para o aperfeiçoamento de uma civilização.
RRJ – Mudando do Rio de Janeiro para a Europa, um continente pelo qual, sabemos, o senhor tem muita estima, gostaríamos de saber qual cidade o senhor considera que seria hoje (1913) a principal cidade do Ocidente?
PP – No meu entender, Berlim.
RRJ – Não seria Paris?
PP – Não, não seria. Considero Paris uma cidade com uma arquitetura muito homogênea, o que a torna um tanto monótona. Vejo Berlim como a grande cidade moderna, de grande riqueza arquitetônica e economicamente muito vivaz, com as suas indústrias dando nota da pujança moderna da cidade.
RRJ – Para terminar, gostaríamos de saber como o senhor pensa que será tratada a sua memória?
PP – Acho que isso vai depender em muito do contexto histórico em que se estará vivenciando. Acho que as elaborações a respeito da minha imagem virão a responder a demandas da cidade, a questionamentos que os seus habitantes farão a si mesmos e ao próprio Rio de Janeiro, isso se a minha figura não vier a cair no esquecimento, como é comum a maior parte dos homens públicos no Brasil.
ENTREVISTA / Pereira Passos por ele mesmo*
Por Antonio Edmilson Martins Rodrigues e André Nunes de Azevedo
* O que será lido a seguir resultou de um trabalho de mapeamento dos arquivos do Prefeito Pereira Passos no Museu da República e da documentação oficial de seu governo na cidade com ênfase nos materiais produzidos por sua própria pena. É uma tentativa de exprimir as principais opiniões de Passos a respeito de sua obra na cidade e apresentar as principais características de sua formação. Compreende, desse modo, uma “interpretação dirigida” que envolve questões suscitadas pela própria leitura da documentação. Nossa intenção é, nos próximos números, poder apresentar o “outro lado” e produzir o contraponto.
Ao longo de sua história, o Rio de Janeiro foi definido por uma série de metáforas: “cidade rebelde, no século XVII”; “cidade-corte”, no início do século XIX; “cidade pestilenta”, na segunda metade do mesmo século; “cidade maravilhosa”, no início do século XX; “cidade-nação”, durante o Estado Novo; e, nos dias atuais, a sua mais trágica metáfora, a de “cidade da violência”. Esta é a maior expressão simbólica da crise de civilidade urbana pela qual passa o Rio de Janeiro. Fortemente abalado em sua capitalidade desde a perda de seu status de capital e recebendo duros golpes, tais como os arbítrios da ditadura militar brasileira e a fusão com o interior do estado, o Rio de Janeiro vive uma grave crise, perdendo terreno no campo da cultura e da ação política para outras cidades brasileiras. Em meio a essa constatação, a Revista Rio de Janeiro resolveu “enviar ao passado" dois historiadores, a fim de entrevistar o ex-prefeito da capital federal, Francisco Pereira Passos. A entrevista ocorreu no ano de 1913, último da vida do Alcaide, pouco antes de embarcar em viagem à Europa, onde viria a falecer em mares portugueses, próximo à Ilha da Madeira.
RRJ – Senhor Passos, gostaríamos de saber sobre sua origem.
PP – Nasci em São João do Príncipe, uma cidadezinha do Vale do Paraíba fluminense, em 29 de agosto de 1836, na fazenda do Bálsamo, de propriedade de meu pai, Antônio Pereira Passos. Meu pai era um proprietário agrícola, um senhor escravista que plantava café, milho, feijão e cana-de-açúcar.
RRJ – É verdade que seu pai tinha título de nobreza?
PP – Isso aconteceu no final de sua vida, seis anos antes de seu falecimento, que ocorreu em 1866. Ele recebeu do Imperador D. Pedro II o título de Barão de Mangaratiba, um agrado aos cafeicultores da região, o que na época era muito comum. No entanto, eu nunca gostei muito de títulos, pois sempre acreditei no trabalho e na capacidade empreendedora do homem. Foi por isso que na década de oitenta rejeitei o título de Barão do Corcovado com o qual o Imperador quis me agraciar após o meu empreendimento ferroviário na montanha do mesmo nome. Pela mesma razão, eu já havia rejeitado um casal de escravos na ocasião do meu casamento, nos anos 60.
RRJ – E quanto a sua formação?
PP – Como era comum nas famílias de fazendeiros na época, meus primeiros estudos foram orientados por preceptores, dentro da própria fazenda. Depois, em 1850, vim ao Rio de Janeiro completar os meus estudos preparatórios para a faculdade. O fiz no Colégio São Pedro de Alcântara, administrado pelos padres Paiva, um dos melhores da cidade, onde também estudaram o Marechal Floriano Peixoto e o Dr. Oswaldo Cruz. Concluída esta etapa, ingressei na Escola Militar da Corte, em 1853, na qual me formei engenheiro civil, em dezembro de 1856. Após estar formado, aproveitei a influência do meu pai na Corte e consegui ser nomeado adido de 3a classe na legação do Brasil na França. Fiquei alguns anos em Paris, onde completei a minha formação na École de Ponts et Chaussés e acompanhei uma das etapas da reforma urbana conduzida pelo engenheiro Alphand, durante a gestão do Prefeito de Paris, Eugéne Haussmann. Depois, voltei ao Brasil e iniciei a minha carreira de engenheiro trabalhando para o Império.
RRJ – Como o senhor percebe as mudanças na engenharia nacional, desde a sua formação, nos anos de 1850, até o início do século XX?
PP – Creio que a minha geração de engenheiros se formou em um Brasil com um nível de desenvolvimento material ainda muito incipiente. A cidade do Rio de Janeiro, o maior pólo de atração de obras do país, apresentava um baixo nível de desenvolvimento de sua infra-estrutura urbana, um quadro que foi revertendo-se rapidamente a partir do último quartel dos oitocentos. Ainda, a minha geração de engenheiros encontrava-se submetida à formação militar, a uma filosofia de formação de engenheiros como funcionários públicos do Império, o que, aliás, era o destino de quase todos os poucos engenheiros que se formavam no Brasil dos anos 50 e 60. Já em maior número, a geração de engenheiros que se formou no último quartel do século XIX vivenciou uma realidade distinta, era uma outra cidade. O Rio de Janeiro crescia, sua sociedade complexificava-se, cresciam também as camadas médias urbanas e com elas uma maior demanda por obras de infra-estrutura, que cresceram muito na urbe neste último quartel de século. Com isso, os engenheiros, sobretudo os engenheiros-empresários, organizaram-se em torno de seus interesses privados, como ocorreu com a fundação do Clube de Engenharia, em 1880. Eles passaram a assumir uma série de concessões de obras estatais que anteriormente ficavam a cargo, quase que exclusivamente, do capital internacional. Ademais, esta geração formou-se na Escola Politécnica, na qual o ensino da engenharia já era controlado pelos civis, tanto na direção da Escola, quanto na sua subordinação política que, desde 1874, passou do Ministério da Guerra ao Ministério do Império. Ao contrário da minha geração, mais restrita ao funcionalismo público Imperial, esta foi uma geração que atuou sobremaneira no setor privado da engenharia. Diferentemente da minha geração de engenheiros, que trabalhou tendo como meta maior a ser alcançada a perspectiva de construir uma civilização nos trópicos, que era um projeto do Império, a geração de fins do século XIX, que atuou sobretudo durante o período da República, teve como valor maior a ser atingido a promoção de um progresso que era pensado fundamentalmente como desenvolvimento material. Essa geração considerou que uma vez estabelecido o progresso material, a civilização viria como seu corolário lógico, necessário. A minha geração nunca pensou assim. No Império era diferente, não passamos, por exemplo, pela experiência do encilhamento e o governo era muito cioso quanto a uma série de referências morais.
RRJ – E sobre o abortado projeto de reforma urbana da Comissão de Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro que o senhor presidiu entre 1874 e 1876? Por que o senhor considera que ele não foi executado?
PP – Motivo claro: falta de dinheiro do Estado e falta de interesse da iniciativa privada, pois o projeto demandaria um investimento altíssimo sem garantias de retorno do capital investido. Mas foi uma pena que o projeto não tenha saído da gaveta, pois, no primeiro relatório de 1875, prevíamos a construção de uma grande avenida com curvas, ligando o centro da cidade até as regiões suburbanas do Andaraí e de Vila Isabel, este último um bairro que pensamos como modelo para o subúrbio do Rio. Lá, projetamos a construção de casas para operários com jardins à frente, uma universidade, um jardim zoológico e um horto botânico, ambos ligados à pesquisa científica da universidade. No segundo relatório, fruto de uma série de críticas ao precedente, no qual decidimos não intervir no centro urbano, fomos compelidos a reformar a cidade velha. Em meio a forte pressão para que derrubássemos os morros do Castelo e de Santo Antônio, que vários médicos e engenheiros consideravam propiciadores de miasmas por obstarem a circulação do ar, decidimos manter elementos naturais da urbe. Para isso, projetamos uma avenida ligando o setor norte ao setor sul do centro da cidade e outra ligando o leste ao oeste, da Praça XV de Novembro até o sopé do morro de Santo Antônio, o que nos possibilitaria resolver o problema dos miasmas pela captação das brisas oceânicas em três direções. Assim, antecipamos a trajetória da Avenida Central, projetada pelo Ministro Lauro Müller no início da Grande Reforma Urbana de 1903-1906. Antecipamos também a construção da Avenida Beira-Mar que, no mais, era até mais completa do que a que construímos quando fui Prefeito, pois, no projeto de 1876, ela ligaria o bairro de São Cristóvão até Botafogo, passando pelo centro da cidade, seguindo o contorno do litoral com as suas sinuosidades.
RRJ – A quem o senhor julga que caberia a atribuição de cuidar da cidade, de seu planejamento social, de sua infra-estrutura? Aos médicos ou aos engenheiros?
PP – Durante o Império, esta tarefa esteve mais nas mãos dos médicos. No entanto, na República, em função da organização do Clube de Engenharia e de sua capacidade de se aproximar do Estado e de fazer valer os seus pontos de vista, esta função passou, claramente, a ser dos engenheiros, o que pôde ser verificado pelo papel destacado que este tipo de profissional teve na Grande Reforma Urbana de 1903-1906. Uma vez, em uma das reuniões do Clube de Engenharia, um dos sócios do clube procurou definir o papel de ambos os profissionais nos processos de intervenção urbana. Ele disse que aos médicos caberia diagnosticar os problemas urbanos, mas que a cura dos mesmos caberia aos engenheiros.
RRJ – Voltando à questão da sua formação, qual teria sido a importância de o senhor ter participado da reforma urbana de Haussmann? O senhor se consideraria um engenheiro haussmanniano ?
PP – Sem dúvida, a reforma urbana promovida pelo prefeito Haussmann em Paris me influenciou, como a maioria dos urbanistas do Ocidente até a virada do século. No entanto, a reforma urbana promovida por Haussmann foi-me muito mais uma referência do que um modelo a ser seguido. Para constatar isto, basta comparar as plantas e a carta cadastral da minha reforma urbana com as da reforma urbana Haussmann. Uma das maiores características da reforma Haussmann foram as avenidas circulares que deslocavam o trânsito do centro da cidade. Na minha reforma, de maneira diversa, eu criei três ligações do centro urbano com o subúrbio do Rio de Janeiro. Veja os round points, tão famosos e característicos da reforma Haussmann, não fiz nenhum no Rio de Janeiro. A minha intervenção urbana foi muito mais discreta, não teve a grandiloqüência característica da reforma Haussmann, cheia de perspectivas que realçavam a monumentalidade de Paris. Entretanto, sem dúvida, alguns princípios da reforma parisiense me influenciaram, como a valorização da alta cultura e da tradição local.
Acho que sou muito pouco haussmanniano para os padrões de gosto da elite carioca. Engraçado que quando o Imperador D. Pedro II recusou os meus relatórios da Comissão de Melhoramento da Cidade do Rio de Janeiro. Ele o fez alegando que eram haussmannizantes, um belo álibe para quem não tinha condições de executar uma reforma urbana para o qual tinha pago os estudos. Depois até virou moda no Rio de Janeiro chamar os prefeitos da cidade de Haussmann ou haussmannizadores, pois, assim, a imprensa carioca já vinha fazendo com alguns alcaides que me precederam.
RRJ – Agora, gostaríamos de falar sobre aquilo que mais lhe notabilizou, a reforma urbana do Rio de Janeiro que o senhor realizou no início do século XX, como prefeito da cidade. Qual foi o seu maior objetivo nesta reforma?
PP – Sem dúvida, fazer do Rio de Janeiro uma cidade civilizada.
RRJ – E o que isto significa para o senhor?
PP – A meu juízo a emergência das massas operárias nas grandes urbes é o maior problema das cidade modernas. Elas vivem sem dignidade, o que ameaça o equilíbrio de toda a sociedade, compromete a civilidade urbana e milita contra a civilização. Para mim, uma cidade civilizada supõe conferir dignidade habitacional ao operariado, educá-lo, estimular-lhe o apreço pela cultura e o gosto do belo, condições indispensáveis da civilidade urbana e da civilização. Considero fundamental que o operariado desenvolva-se com o gosto pela beleza e a preservação urbana, com ruas e habitações dignas, bem urbanizadas, só assim estes modestos obreiros da civilização poderão integrar-se de fato à sociedade. Algo que me faria muito gosto é que os operários do Rio de Janeiro usassem mais o centro urbano após a reformulação que nele executei, pois aquele espaço, como encontrava-se antes, era um desestímulo à urbanidade. Agora, ao contrário, tornou-se um estímulo a ela, por isso, seria importante a presença não só dos operários, mas de toda a população no centro da cidade. Assim, todos poderão levar, dentro de si, aos seus bairros, um modelo de civilidade urbana.
RRJ – De quais instrumentos o senhor lançou mão para promover a civilização no Rio de Janeiro?
PP – Vários. Mas posso destacar os três projetos de vilas operárias que desenvolvi, duas junto ao centro da cidade, outra também próximo dele, na Glória; a proibição de “maus usos” da cidade; a transferência de escolas do centro da cidade para o subúrbio e a inauguração de novas escolas nestes bairros, onde maior é a necessidade delas; o fomento à educação estética do carioca, através do Teatro Municipal, e a integração de toda a cidade ao seu centro urbano, lugar exemplar de sua civilização.
RRJ – No seu entendimento, qual seria o papel da classe operária na cidade?
PP – Como eu já havia dito em duas ocasiões nas minhas mensagens à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, eles são os modestos, mas valiosos obreiros da civilização, ou seja, são aqueles que cuidam da parte operacional desta. Como o Teatro Municipal seria erguido sem os operários? É claro que a contribuição que eles dão ao desenvolvimento da civilização é mais modesta que a dos artistas, cientistas, intelectuais e engenheiros, mas isso não quer dizer que eles não participem com contribuição alguma. Um operariado com disciplina para o trabalho e que seja governado por uma elite de sábios é muito valioso para o aperfeiçoamento de uma civilização.
RRJ – Mudando do Rio de Janeiro para a Europa, um continente pelo qual, sabemos, o senhor tem muita estima, gostaríamos de saber qual cidade o senhor considera que seria hoje (1913) a principal cidade do Ocidente?
PP – No meu entender, Berlim.
RRJ – Não seria Paris?
PP – Não, não seria. Considero Paris uma cidade com uma arquitetura muito homogênea, o que a torna um tanto monótona. Vejo Berlim como a grande cidade moderna, de grande riqueza arquitetônica e economicamente muito vivaz, com as suas indústrias dando nota da pujança moderna da cidade.
RRJ – Para terminar, gostaríamos de saber como o senhor pensa que será tratada a sua memória?
PP – Acho que isso vai depender em muito do contexto histórico em que se estará vivenciando. Acho que as elaborações a respeito da minha imagem virão a responder a demandas da cidade, a questionamentos que os seus habitantes farão a si mesmos e ao próprio Rio de Janeiro, isso se a minha figura não vier a cair no esquecimento, como é comum a maior parte dos homens públicos no Brasil.
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