sábado, 24 de março de 2012

Coração Satânico

Por Máximo



Meu amigo de infância, o grande 28, das peladas aqui de uma rua de Vila Isabel, sempre me sacaneava quando ameaçava vir com alguma chorumela. Diabético e, por isso, o descuido levado ao paroxismo, terminara amputado a perna direita;  parecia, entretanto, indiferente, ou, ao menos, usando o humor pra deslocar o pavor ao pendurar a própria muleta num prego na parede oposto ao sofá onde passava a maior parte do tempo lendo e vendo o Flamengo. O trajeto em busca da muleta era uma espécie de argumento à indispensável ausência de comiseração. A senha ou "profilaxia" vinha, segundo pontificava, do 433 (Praça Sete_Leblon):

"Fale ao motorista somente o indispensável."

Quem o conhecia sabia que, de fato, tudo era papo, menos a chorumela pieguas do amputado.

Certo, 28 nunca lera Ferreira Gullar, para quem a dor, quando insuportável, paraliza. Penso que a vantagem da palavra escrita é justo poder ver materializado o que antes permanecia inefável, embora incômodo.

"A palavra foi feita pra dizer, não pra brilhar feito ouro falso." (Graciliano Ramos)

Desenho não é à toa. Este texto parece um parafuso de rosca infinita. Não trava. É que uma tristeza funda às vezes parece vir não do amigo 28, muito menos do monstro sagrado da literatura nacional, mas da 28, de onde vem o apelido do próprio, no passo de Martinho, "bem devagar, devagar, devarinho".

Comecei a desenhar este "Chico Anísio".

O cotovelo impõe a autonomia - Picasso, de resto, como sempre, já asseverara - e a foto de Chico Anísio que utilizo à medida que desenho - as canetas bic preta, azul e vermelha, a tridente (0.3) a nanquim, o grafite raspado ao estilete - sugere uma deformação.

Há na foto um caminho que me surpreende. Percebo na caricatura de Chico uma expressão que, ao contrário do brasileiro do panegírico, do jornal que vende, da televisão que enxagua a sala, o brasileiro de Sérgio Buarque, cordial, do coração, mas do coração satânico, perverso, os olhos em sofreguidão de espiral para a ruptura. 

28 tem razão:

"Máximo, meu irmão, deixa o texto com o Tadeu."

SRN 

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