Por Tadeu dos Santos
Dentre os vários significados de utopia são encontradiços as noções de civilização ideal e ainda a de lugar inexistente. Percebam que as acepções possuem alcance e relevância substancialmente diferentes.
Ao longo do século XX fomos literalmente assolados por alguns movimentos utópicos e a imensa mortandade provocada pelo Nazismo e pelo Socialismo durante a 2ª Grande Guerra Mundial, bem como em meio à Guerra Fria que veio em sua esteira, opondo a utopia socialista aos ditames do liberalismo fez com que a utopia fosse compreendida de forma reticente e posta sob o entendimento de que no mais das vezes contraria os fins que pretende alcançar.
No entanto, o aperfeiçoamento e a busca do tanto que há de melhor em nossas humanas entranhas consiste em alguns momentos na direção do foco a anseios distantes que, à primeira vista, soam meio que inalcançáveis. Antever e buscar o invisível, o que ainda não se dá à visão é o que faz de nós humanos e é nesse quadro que a utopia se faz parceira a nos apontar o norte.
Vejam, exemplificativamente, a discussão acerca da Privatização das Prisões.
Há, claro, bons argumentos tanto dentre os defensores quanto em meios aos opositores da ideia. Os que se posicionam favoravelmente à medida afirmam que a privatização traria racionalidade ao nosso sistema penitenciário, desoneraria o Estado e indiretamente traria benefícios aos presos.
O grupo contrário a esse entendimento pontua que o preso está sob a responsabilidade do Estado que deve zelar por sua integridade física e psicológica. Ademais inadmite-se que a privação da liberdade de alguns homens possa permitir que outros logrem auferir lucros com o seu encarceramento.
Ora, utopicamente, orientamo-nos para a busca de uma sociedade sem crimes, onde a privação da liberdade de um semelhante seja lembrança inglória de tempos bárbaros. Nessa perspectiva a privatização transforma-se em uma pedra de consideráveis dimensões a fechar o caminho por onde livremente deveriam circular nossas aspirações utópicas.
As prisões deixariam de ser o locus temporários que atestariam, em apertada síntese, nossa incapacidade de gerir adequadamente uma sociedade que a todos deveria acolher, para o vir-a-ser depósito-fábrica onde a privação da liberdade geraria mais-valia num cenário em que o crime seria seu bilhete de entrada. O mercado teria um novo produto e o crime seria erigido à condição de apenas mais um dente na engrenagem.
Em suma, a privatização das Prisões representaria, indubitavelmente, o fim da utópica ideia que pugna por uma sociedade em que inexistam crimes.
Essas linhas iniciais tem por escopo alinhavar uma tentativa de alargamento na condenação a todo e qualquer tipo de tortura, eis que também nesse terreno perseguimos o fim das admoestações psicológicas, dos castigos físicos e no limite, do extermínio físico daqueles que não comungam da mesma visão do mundo que abrigamos.
Vejam que não há unanimidade em nosso país em relação à toda tortura praticada ao longo da Ditadura Militar iniciada com o Golpe de 1964. A mesma inferência aplica-se no que tange aos expurgos Stalinistas, aos Métodos de Interrogatórios Coercitivos de Guantánamo, ao período do Estado Novo de Vargas, bem como aos excessos praticados ao longo da Revolução Cubana.
A revista mensal Piauí, nº 72 – setembro/2012, tem artigo assinado por David Grann, intitulado “Anais da Revolução – O Comandante Ianque” que trata da história de William Alexander Morgan que lutou ao lado dos revolucionários cubanos e que após o êxito da insurgência chegou ao cargo de Comandante.
Morgan, assim como vários outros revolucionários acreditaram na palavra dada por Fidel que assegurava que após a derrubada de Fulgêncio Baptista o país voltaria à normalidade com a devida convocação de eleições livres.
Apenas em abril de 1961 com a fracassada tentativa de Invasão da Baía dos Porcos é que Fidel veio a público e anunciou que o movimento fora um ato coletivo apenas nos seus primórdios, mas que agora, já consolidado, convolara-se numa obra-solo e que sim, Cuba é socialista. Tudo isso 2 anos e meio após a queda de Fulgêncio.
A novel orientação do movimento provocou, claro, a discordância de Morgan que, nos desdobramentos que se seguiram, foi inclementemente fuzilado.
Yoani Sánchez é prova inconteste da inteira ausência de liberdade de expressão na Ilha e os entraves postos à livre circulação de pessoas e bens fazem de Cuba para muito de seus habitantes uma espécie de prisão domiciliar.
O contexto cubana foi carreado a esse texto apenas e tão somente para demonstrar que grupos de brasileiros que se filiam a uma determinada orientação político/filosófica são unânimes na condenação à tortura praticada durante a Ditadura Militar por um lado e, no entanto, guardam um silêncio aquiescente e conivente no que se refere aos excessos praticados em Cuba (incluindo, claro, a tortura).
São os fins a justificar os meios. Tolero, assim, a tortura na medida em que ela seja posta a reboque da consecução dos objetivos intentados pela ideologia a que adiro.
Tem-se, por essa abordagem, que o pau-de-arara cubano doi e avilta menos do que aquele utilizado por estas plagas. O campo de concentração nazista é menos deletério do que o similar soviético. Os choques elétricos aplicados em Guantánamo são menos apavorantes do que os que são dados por grupos extremistas islâmicos.
A aceitação das exceções (e não são poucas) ditas pelas diferentes ideologias perpetuam e generalizam a tortura.
É árdua, sem dúvida, a conquista das ditas liberdades fundamentais. É também uma tarefa ingente conviver, aceitar e respeitar as diferenças, sobretudo quando temos o poder às mãos. Mas utopias são assim mesmo: belas e dificeis.
Logo ao início do texto nos remetemos à dualidade existente na definição do que significa utopia.
Acaso prossigamos aceitando as exceções crendo na falácia de que os fins justificam os meios a utopia será, efetivamente, um lugar que não existe.
Por outro lado, se pretendemos ao menos nos aproximar do conceito de civilização ideal, a inteira condenação à tortura não há de se fazer caudatária de qualquer ideologia.