Por Tadeu dos Santos, graduado em Ciências Sociais e Direito pela UERJ
O presente texto terá início com um parentêsis:
Forest Whitaker, que mais tarde ganharia o Oscar pelo filme O Último Rei da Escócia (2006) também participa, ao lado de Stephen Rea e Miranda Richardson, do excelente Traídos pelo Desejo, película dirigida por Neil Jordan que em 1992 impactava a plateia com cenas, eu diria sublimes, de homossexualidade. Nos dias que seguem, as ditas cenas soariam algo corriqueiras e, no entanto, o filme prossegue incólume e primoroso. A atemporalidade é um dos elementos aptos a extremar a arte da técnica. Ademais, Traídos pelo Desejo é prova insofismável de que um grande filme vai além do tema de que se ocupa.
Percebam que já ao início de Traídos pelo Desejo toca “When a Man loves a Woman, com Percy Sledge.
Pois a mesma música rola também no início da primeira cena de Quando um Homem Ama Uma Mulher (1994), filme que trata de alcoolismo.
Fomos de Whitaker à “Traídos pelo Desejo”, passamos por Percy Sledge, nos referimos à Quando um Homem Ama Uma Mulher para terminar falando de um tipo específico de droga: o álcool.
A extremidade anterior liga-se à seguinte e assim por diante. Estamos todos ligados por filmes, músicas e circunstâncias e isso, convenhamos, não é de todo ruim.
De todas as memórias de que sou portador, a musical é, sem dúvida, a mais importante. Ela é dotada do poder de remeter-me a lugares, aromas e pessoas de uma maneira extremamente singular. Inicia-se a morte, eu creio, quando deixamos de apreciar a música.
A relação existente entre o homem e a música guarda estreita semelhança com aquela que liga Deus ao homem. A interdependência é tão forte que não possibilita a cogitação da existência do criador sem a sua criatura. Richard Wrangham em seu maravilhoso “Pegando Fogo – Por que cozinhar nos tornou humanos”, Zahar, 2010, Rio de Janeiro, trata da importância do cozimento dos alimentos para o surgimento dos seres humanos, conforme “acredito que o momento da transformação que deu origem ao gênero homo, uma das grandes transições na história da vida, brotou do controle do fogo e do advento d refeições cozidas. O cozimento aumento o valor da comida. Ele mudou nossos corpos, nosso cérebro, nosso uso do tempo e nossas vidas sociais. Transformou-nos em consumidores de energia externa e assim criou um organismo com uma nova relação com a natureza, dependente de combustível”.
Esse “tornar-se humano” é um processo e a música, assim como o andar ereto e o domínio do fogo, também se reveste de suma importância na construção/definição do que somos.
Gosto do blues seco de John Lee Hooker. Sua voz rascante nos leva ao Mississipi das plantações de algodão. Ela é o sol incidindo sobre as costas do homem agachado diante do trabalho que o brutaliza. B. B. king também é do Mississipi. Ele diz que é um ser dotado de muita sorte por haver sobrevivido aos desígnios que um homem de sua condição trazia grudados à pele desde o primeiro respirar. Gosto também de Elmore James e sua It Hurts me Too. Há ainda a mão esquerda de Albert Collins e a direita de Hubert Sumlin. Rambling On my Mind é mais uma das famosas parceria que teria feito Robert Johnson com aquele cujo nome não se pronuncia.
Já disse alguém que “o tango argentino me vai bem melhor que o blues”. Não mesmo. Faz-se blues porque o sofrimento é onipresente.
Afirmo, sempre que possível, que Nelson Cavaquinho é um gênio absoluto. Surgiu em meio a todas as improbabilidades e contrariando a sina que lhe haviam imposto criou ao seu jeito uma música única. Suas voz, também rascante, fora gestada nas noites insones e na aguardente que não ousava recusar.
Miles Davis também foi um músico marginal. O bom berço de que proviera indicava o caminho do piano tocado por sua mãe, também música de Jazz. Quis o destino que seu pai lhe pusesse à mão o trompete e que o talento incomum o levasse a criar todas as variações que esse gênero conheceu após a Segunda Grande Guerra.
Há os que buscam a batida perfeita. Ao jazz importa a busca e não o fortuito encontro da perfeição. Vindo esta dar-se ao ouvido e já se torna premente sua superação. E assim foi que Miles Davis passeou pelo Jazz Modal ao Jazz Fusion. Conheceu o Bebop e participou das primeiras gravações de Cool Jazz.
A inquietação musical e o minimalismo são traços definidores de Miles Davis. Um gênio. Repise-se.
Em meio à sua ímpar trajetória Miles viciou-se em heroína. A frequente utilização das drogas fez com que se atrelasse ao reconhecido talento a pecha de irresponsável. Entre idas e vindas e com rara persistência e vontade Miles consegue recuperar-se da primeira recaída com o auxílio de Sugar Ray Robinson (1953-1954) e mais tarde, em 1979, graças à ajuda de sua esposa, Cicely Tyson..
Em associações feitas alhures dissemos que Geraldo, o genial Assoviador, tinha com a bola um relacionamento baseado no mais perfeito magnetismo. Atraíam-se e tamanha estreiteza dava-se ao luxo da dispensa do olhar. Sim! Sabiam um do outro todo o tempo. Outros dirão que eram movidos à espontaneidade. A mediá-los não havia a necessidade do pensar. Intuíam-se apenas.
Chat Baker e a música também eram assim. Tamanha clarividência e afinidade tornavam a partitura um apêndice não poucas vezes dispensado. A perda dos dentes decorrente de surra por dívida contraída junto a traficantes levaria o mais comum dos mortais ao estranhamento do instrumento – trompete. No entanto, com Chat operou-se a criação de um jeito singular (e mais harmonioso) de tocar. Fruto também de um acidente de percurso a descoberta de um som único por Glen Miller (Confira-se em Música e Lágrimas” com June Allyson e James Stewart).
Contrariando as tendências da época, Chat sussurrava ao cantar. Em contraposição ao virtuosismo tão encontradiço naqueles tempos, era também econômico nas notas. Olhando em volta não é difícil a percepção de que a beleza, no mais das vezes, reside na simplicidade e na economia de gestos e palavras. Em meio, contudo, a todo o virtuosismo ínsito ao ambientes jazzístico encontrar um músico com as características de Chat Baker é algo raríssimo.
As drogas - sempre elas - impediram que vivesse com o conforto que se esperaria depois de tanto sucesso alcançado ao longo da carreira. Foi preso inúmeras vezes e alcançou-o uma morte trágica e ainda inexplicada. Caiu da janela do hotel em que se encontrava hospedado, em Amsterdã, Holanda.
Chat morre aos 58 anos no exato ano em que se comemorava a “Libertação dos Escravos”, a saber: 13 de maio de 1988.
É certo que o nosso 13 de maio carecia de uma ainda insanável precariedade, na medida em que não trouxe aos recém-libertos condições econômicas que lhes permitissem uma sobrevivência minimamente digna.
Já o 13 de maio de Chat soa tal e qual a nota dissonante, anunciada e inevitável. Até quando?
Bird é de 1988. Dirigido por Clint Eastwood (ganhador do Globo de Ouro pelo trabalho), o filme fala da vida de Charlie Parker que no filme é interpretado por Forest Whitaker (Melhor ator em Cannes).
Avesso à tradição, fórmulas e fronteiras Parker andou pela vida como se estivesse a dizer que de grilhões bastavam aqueles que a cor da pele e a ignorância que tanto se dá por aí lançaram aos pés e mãos de seus antepassados.
Por muitos considerado o maior saxofonista de todos os tempos, fez com que o Jazz estreitasse relações com outros ritmos e junto com Dizzy Gillespie criou o Bebop (revolução rítmica consistente na reprodução de pequenas notas que tentavam reproduzir o som de marteladas ouvidas por ocasião da construção das ferrovias que, por sua vez, exigia dos músicos um domínio absoluto do seu instrumento).
Parker morreu aos 34 anos de idade. Os grilhões de que se julgava inteiramente livre, teimosamente retornavam embalados pelas drogas que tolheram sua antiga e tão propalada liberdade.
Sim! Droga e liberdade são termos que se excluem mutuamente.
Vá à Cracolândia. Ver-se-ão dedos queimados, dentes careados, roupas esfarrapadas, e olhares perdidos, mas nem um fiapo sequer de liberdade. Não há por aí qualquer resquício de livre-arbítrio. Não são senhores do livre ir e vir. Moram onde morar o traficante.
Em meio a esse contexto cabe perquirir a quem interessa o discurso tendente a apontar a necessidade da adesão espontânea do usuário a qualquer tipo de tratamento. Só há escolha onde há liberdade. São termos indissociáveis. Um não sobrevive na ausência do outro.
Clint Eastwood o diretor de Bird de que já falamos, também dirigiu e atuou em “Os Imperdoáveis” de 1992.
Lá pelo fim do filme William Munny (personagem de Eastwood) após dizer que sempre fora muito bom nessa coisa de matar gente, afirma que a morte é algo extremamente grave. Tira tudo o que o sujeito é e impede tudo o que ele poderia vir a ser.
Assim são as drogas.
Mas elas (drogas) conferem popularidade aos seus defensores. Há por aí até ex-presidente sentando em rodas de programas globais junto a adolescentes para explicar a necessidade de sua descriminalização. E pensar que após tanto tempo junto ao poder, somente agora logrou arrumar um tempinho para se ocupar com esse tipo de problema.
Dir-me-ão alguns que certas drogas já circulam por aí há mais tempo que o próprio cristianismo.
O câncer também já conta milênios e alheio à passagem do tempo, prossegue o homem em busca de uma cura ou mesmo de paliativos que possam mitigar o sofrimento.
Mas o consumo de drogas envolve posturas ideológicas, livre-arbítrio, “do meu corpo cuido eu” e por aí vai. Diga algo contra e pronto: você vira o “reaça” da hora.
O proselitismo, assim como o câncer e as drogas, é antigo pra cacete e, de igual maneira, prolifera com a mesma rapidez. Ele, assim como o câncer e as drogas, é consideravelmente incômodo. Ainda assim, prosseguirá sendo praticado. Não há no horizonte nada que prenuncie o seu fim. Não custa, ainda assim, evitá-lo em circunstâncias em que se opera a produção de órfãos, mães desesperadas e famílias destroçadas.
Poderia cativar o apreço alheio dando testemunho das inúmeras perdas que as drogas provocaram em minha vida. Todavia, quem vive de testemunho é evangélico e eu sou um ateu por demais convicto para soçobrar a essa altura do caminho.
Não me canso de afirmar que ideologias não são roupas. Estas são mutáveis de acordo com a ocasião. Se vou ao cinema uso uma, se ao casório ponho outra. Ademais, não as repito ao longo da semana.
Ideologia não. Ela há de ser a mesma, chova ou faça sol.
Vista, pois, a sua ideologia e vá a um velório consolar a família que se despede do familiar morto por um traficante.
Fica o convite. Inscrições no blog do Máximo.
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