Tenho um velho amigo
gago. Dessas figuras folclóricas, popular, prestativo, da rua, quarteirão, ao
bairro. Conta esse meu amigo que, ruim agora, sua gagueira era bem pior quando moleque,
pelo que entendi, pois nessas horas é mais fácil pra ele representar: pega
minha caneta nanquim, coloca no canto da boca, torce o nariz, pega um copo,
enche d'água. Olha prum lado, pro outro, cambaleia até à cozinha, derrama
na pia um pouco da água e volta, sempre trocando as pernas, sacudindo o
corpo:
"Eeeeenn...enteeen...deu,
Mámámá...Máxi...?"
Entendi, o cara era um Pai
de Santo, de confiança da Mãe desse meu amigo. . Ainda meio sonolento, o
barulho na sala chegando até o quarto, mas já estava acostumado e sabia que
naquele dia o pessoal da Fábrica Confiança, onde sua mãe trabalhava, vinha pro
descarrego. Então, a baforada do charuto fora suficiente. O Caboclo,
devidamente arriado, suponho (nessa parte, meu amigo dobra-se todo, ainda mais
ininteligível) abre o porta do quarto, seguido pela sua mãe, e aproxima-se da
cama. Faz o "pela cruz", bafora ali, bafora aqui:
"Tá carregado esse
meu filho."
Essa parte é mais uma
recriação, pois eu não entendia nada do que o meu amigo falava.
"Fiquei bom,
nanana... hoora, Máma...ximo."
Aí tentou repetir o que
começara a falar. Nisso, bateu 4 da manhã. Tentando encurtar a conversa:
"Maravilha, meu
irmão, fica pra próxima."
"Tu naaauuumm qué
sasaa...ber o resto?"
O Pai de Santo também
se chamava Murici e prestava serviços pra todo mundo naquela época, na fábrica.
Até na sala do pai do Braguinha, que fora diretor da Fábrica Confiança, o Murici
entrava e, assim como quem não quer nada, abria a sua marafa e dava sua
baforada. Não cobrava nada, mas não fazia muita diferença. Murici era glutão e
a garantia do "trabalho" era dada mediante o "caboclo comer e
beber do bom e do melhor". Em Vila Isabel, muito português, dono de
açougue, fechava a semana graças à voracidade do caboclo do Murici. Naquele
dia, entretanto, Murici excedeu-se. Convenhamos que só quem conhece a gagueira
desse meu amigo avalie do trabalho do caboclo: Murici, após meu amigo emitir
impecável, "três tigres tristes", sacudiu o corpo de uma tal maneira
que a força que o caboclo fez pra subir acabou jogando-o pela janela, vindo a
cair em cima dos vasos de antúrio e "comigo ninguém pode" que a Mãe
desse meu amigo cultivava na porta de casa. Murici comeu e bebeu, novamente
bebeu e comeu e, antes de sair, resolveu evocar o caboclo, pois a Mãe desse meu
amigo caprichara e Murici, pelo jeito, queria deixar tudo certo pra poder
voltar:
"Madame, mi si
fio, só pra fechar..."
E saiu pela casa,
baforando. Caboclo inglês, meticuloso, resolveu passar em baixo de uma
cristaleira que ficava a um canto da sala.
"Só pra
confirmar..."
Murici acabou entalado
e tiveram que chamar o bombeiro. Gosto muito desse meu amigo, mas já estava
muito tarde. Não soube se o caboclo chegou a ser resgatado junto com o Murici.
SRN