terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A Cristaleira do Murici



Tenho um velho amigo gago. Dessas figuras folclóricas, popular, prestativo, da rua, quarteirão, ao bairro. Conta esse meu amigo que, ruim agora, sua gagueira era bem pior quando moleque, pelo que entendi, pois nessas horas é mais fácil pra ele representar: pega minha caneta nanquim, coloca no canto da boca, torce o nariz, pega um copo, enche d'água. Olha prum lado, pro outro, cambaleia até à cozinha,  derrama  na pia um pouco da água e volta, sempre trocando as pernas, sacudindo o corpo:

"Eeeeenn...enteeen...deu, Mámámá...Máxi...?"

Entendi, o cara era um Pai de Santo, de confiança da Mãe desse meu amigo. . Ainda meio sonolento, o barulho na sala chegando até o quarto, mas já estava acostumado e sabia que naquele dia o pessoal da Fábrica Confiança, onde sua mãe trabalhava, vinha pro descarrego. Então, a baforada do charuto fora suficiente. O Caboclo, devidamente arriado, suponho (nessa parte, meu amigo dobra-se todo, ainda mais ininteligível) abre o porta do quarto, seguido pela sua mãe, e aproxima-se da cama. Faz o "pela cruz", bafora ali, bafora aqui:

"Tá carregado esse meu filho."

Essa parte é mais uma recriação, pois eu não entendia nada do que o meu amigo falava.

"Fiquei bom, nanana... hoora, Máma...ximo."

Aí tentou repetir o que começara a falar. Nisso,  bateu  4 da manhã. Tentando encurtar a conversa:

"Maravilha, meu irmão, fica pra próxima."

"Tu naaauuumm qué sasaa...ber o resto?"

O Pai de Santo também se chamava Murici e prestava serviços pra todo mundo naquela época, na fábrica. Até na sala do pai do Braguinha, que fora diretor da Fábrica Confiança, o Murici entrava e, assim como quem não quer nada, abria a sua marafa e dava sua baforada. Não cobrava nada, mas não fazia muita diferença. Murici era glutão e a garantia do "trabalho" era dada mediante o "caboclo comer e beber do bom e do melhor". Em Vila Isabel, muito português, dono de açougue, fechava a semana graças à voracidade do caboclo do Murici. Naquele dia, entretanto, Murici excedeu-se. Convenhamos que só quem conhece a gagueira desse meu amigo avalie do trabalho do caboclo: Murici, após meu amigo emitir impecável, "três tigres tristes", sacudiu o corpo de uma tal maneira que a força que o caboclo fez pra subir acabou jogando-o pela janela, vindo a cair em cima dos vasos de antúrio e "comigo ninguém pode" que a Mãe desse meu amigo cultivava na porta de casa. Murici comeu e bebeu, novamente bebeu e comeu e, antes de sair, resolveu evocar o caboclo, pois a Mãe desse meu amigo caprichara e Murici, pelo jeito, queria deixar tudo certo pra poder voltar:

"Madame, mi si fio, só pra fechar..."

E saiu pela casa, baforando. Caboclo inglês, meticuloso, resolveu passar em baixo de uma cristaleira que ficava a um canto da sala.

"Só pra confirmar..."

Murici acabou entalado e tiveram que chamar o bombeiro. Gosto muito desse meu amigo, mas já estava muito tarde. Não soube se o caboclo chegou a ser resgatado junto com o Murici.

SRN

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