segunda-feira, 19 de julho de 2010

Libertadores das Américas




Por Ameríndio Sevilha

A bola era o campo de jogo. Calos de sangue, agulha aquecida, pedaços de linha. Os pés descalços sobre paralelepípedos ao improviso de drenos. Os "pé pretos" vetados ao voo. Pedaços de dedos espalhados em volta do puma que explodiu. Pinochet tem um estádio onde escorre o sangue que seu títere arranca de Adílio. 2 x 0 . A América não necessita libertadores que não saibam tocar a bola, as pernas arcadas, como Adilio da Cruzada


Camelôs, gritando palavras de ordem, ocupavam a Senador Dantas, fechando a rua. De repente outra explosão, a banca de jornal, mais outra, a secretária da OAB, uma mesa elíptica, uma bancada de fórmica negra, então o homem para, olha, e corre, e volta a olhar, pensando tratar-se da PM a corrigir os infelizes que o dificultavam o percurso até à Carioca.


Está certo de que fora justo ali, no cruzamento da Almirante Barroso com a Senador Dantas, que ouve a terceira explosão que acabara de vez com as palavras de ordem. Também lhe pareceu ter visto de relance uma pilha de galões, deixados inadvertidamente atrás da grade que dividia o largo. Apesar da pressa, parou para lhes verificar os rótulos, descobriu se tratava de material inflamável destinado à limpeza da Carioca para a feira de livros que ali se realizaria.


Na Uruguaiana, vidraças estilhaçadas, monturos de comidas à vista, lojas de eletrodomésticos arrasadas, expondo pela calçada bagaços de isopor, carcaças de geladeiras cheias de santinhos de candidatos misturados aos de Anastácia, em papel ordinário. A igreja da escrava permanecia aberta, parecia pressentir o momento em que se afirmaria contra a inópia: para a sua nave, aquele dia especialmente iluminada permeável a pecados, acorriam os habituais desvalidos, de chinelos, bermudas coloridas de marcas falsas, abraçando, quase todos, liquidificadores, microondas, computadores, dvds e televisores de plasma, dos grandes.


Um puxão no braço esquerdo o fez olhar na direção da esquina. Era a menina, que descobria no camelódromo à frente um carrinho de supermercado com sacos de balas coloridas incólumes. Outro puxão, agora de um moleque, novamente a menina, agora que olhar a igreja tornara-se um risco. Com as mãos firmes nas crianças, embrenhou-se no tumulto que rolava para o metrô, desceram, tentaram atravessar o mezanino e ficaram uns vinte minutos empurrando, exangues na vazante humana contida pela segurança erguida junto às roletas. Tremendo, a menina agarrou-lhe a perna, o menorzinho ameaçou chorar.


Aquela cena que bem merecia um óleo tinha para o homem a potência evidente de uma forma bem resolvida. Um Portinari a orar. Ressurecto, sem aludir ao homem que virou resto. Um Portinari na escala, proporção, contraste e assimetria, exatamente igual à posição em que agora se encontravam as crianças em seus braços.


A vazante deu sinal de movimento. A barragem da segurança começou a escoá-los. Alcançaram a escada para a Presidente vargas. Enquanto subiam, a única coisa que o homem queria era ser rápido, chegar logo à Candelária, onde imaginava encontrar a parte da família das crianças, que, segundo a menina, morava ali, sob as caixas de papelão que recolhiam.


Em vão.

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