Por Tadeu dos Santos
Nos exatos termos do jargão jornalístico da época, nuvens plúmbeas se fizeram água e desabaram sobre as Minas Gerais. Eram as águas de março de que nos falava Tom Jobim. Nos dias que seguem o engenho humano mapeou nosso DNA e ainda não conseguiu remediar o efeito das intempéries. Naqueles idos, o homem que já fora à lua e por lá fincara o estandarte americano, como que a inaugurar o imperialismo sideral, também não se tornara senhor dos nefastos efeitos trazidos pela chuva. E assim naqueles sítios por onde nascera Drumond não se vislumbrava a luz do satélite que poucos anos antes era ainda virgem à ação humana.
Aqui e ali as casas estavam ao chão e amiúde via-se gente que já não tinha um teto pra chamar de seu. Resolveram ajudar. Alguém disse então:
- Vamos juntar gente, fazer um time contra, torcida grande contra grande torcida, rei contra rei e tudo isso num palco. Dá pra ser?
Tudo combinado e a data foi aprazada, juntaram os times e chamaram os reis.
Era 06 de abril de 1979. O time de torcida grande era o Atlético Mineiro. O que tinha a grande torcida era o Clube de Regatas do Flamengo. Há quem diga que o vermelho e preto está de tal forma junto e misturado que não se sabe onde começa o time e termina a torcida. Dizem que é tudo uma coisa só. Orgânica. Domingo sim e no outro também, a mistura se faz onda, parece tsunami, vem num grito crescente, se avoluma e vai ter ao gramado. E como é bonito de ver.
Havia o rei coroado em terras do norte da Europa. Terra que, saliente-se, já tinha um soberano a quem render loas. Mas tal e qual a bola não opuseram resistência ao reinado que não conheceria língua e tampouco fronteiras. Era um Habsburgo tupiniquim. Reinava com graça e competência. Impunha-se pelo consenso e dispensava armas. A moeda circulante atendia pelo nome Gol. E era farta. Sim, era farta. Falo, claro, de Pelé.
Os olhos junto ao vidro do berçário divisavam o berço onde dormia aquele menino louro e franzino. Ainda ao ventre foi destinatário de nome de rei. Chamar-se-ia Arthur e diferentemente daquele surgido em terras britânicas, reinaria em paz. Vinha de uma dinastia que já conhecera Zizinho e Dida. Estava, todavia, predestinado aos grandes feitos e o que se passou naquele 06 de abril era apenas um ligeiro prenúncio, um preâmbulo, eu diria. Toda a gente do Reino Flamengo o chamava Zico.
O palco escolhido foi o mesmo que em 1950 viu uma multidão de mais de 200 mil almas caminhando em silêncio. Viu também a folha seca de Didi, a gingada de Garricha, a elegância de Ipojucã e a classe de Domingos da Guia.
E como jogaram bonito. Naqueles tempos era a beleza o único paradigma vigorante e não havia nada mais seguro do que marcar gols. Ainda não havia no mundo da bola a divisão por eras. A Rainha Beleza não tinha ainda opositores a dizer que era já uma senhora, superada e pronta à substituição. Ao tempo era altaneira, inconteste e em seu altar zagueiros eram dados ao sacrifício. A colheita vinha farta.
Em 1982 um de seus fieis seguidores perderia a batalha de Sarriá. A partir de então aqui e ali passaram a duvidar de seus poderes. Em 1986 mais um revés e os detratores, a princípio tímidos e covardes, cerraram fileiras.
Pesquisa realizada pelo IBOPE nos anos de 1990, revelou que Telê Santana era considerado o melhor técnico que esteve à frente da Seleção Brasileira. Era o sufrágio popular. Parafraseando o poeta: que nos desculpe o Dunga, mas a beleza é fundamental.
Telê era alcunhado Fio de Esperança. Que se faça, pois, o fio de Ariadne e que nos guie de volta aos tempos de beleza pura, dinheiro não.
Disse alguém que Garrincha fazia do espaço de um lenço um verdadeiro latifúndio. Pois naquela noite de reis do longíquo 1979, ainda víamos pontas e aquele que atuava pelo lado esquerdo tinha nome de imperador, Júlio César. E o latifúndio reduziu-se às dimensões do espaço demarcado que se segue à bandeira de escanteio. O lateral que também poderia ser nomeado João Ninguém, atendia por Alves. Foi por entre suas pernas que alvissareira passou a bola. Já à pequena área o rei Zico a escoraria de barriga. Não se deixem levar pela dureza das palavras. O lance foi prenhe de elegância.
Zico fez três gols. Luisinho e Cláudio Adão completaram a goleada. 5 x 1 pro Mengão.
O ritual foi realizado em pormenores. A liturgia se fez plena. E ao som de cânticos Pelé deu ao conhecimento do corpo o manto vermelho e preto. Em seu retorno à Vila Belmiro sentia-se completo, inteiro. Como vivera sem tudo aquilo? E que torcida é essa, hein?
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