terça-feira, 13 de julho de 2010

O Camarada Vermelho (e preto)

Tenho um conhecido chamado 28, que volta e meia aparece aqui, que não anda bem de saúde. O cara é diabético, teve de parar de fumar, de beber, de comer doce, que adorava. Somos da mesma geração e, quando moleques, jogávamos bola numa rua hoje inviável.

Não o via faz tempo.

Passando na Teodoro, esquina com a Gonzaga, ali em Vila Isabel, sai debaixo do orelhão um cara trocando as pernas, se escora na parede do botequim, parece que está bêbado e vai cair. Acelero o passo pra dar uma força:

"Tá tranquilo, tá tranquilo..."

Esperei pra ver se me reconhecia e vi logo que estava sóbrio.

"Valeu, meu irmão..."

Ainda dei mais um tempo, mas 28 não me reconheceu; talvez, pela impressão que tive, pela esforço que fazia pra firmar a vista.

O diabetes só ficou evidente pela receita que lhe caiu do bolso junto com a carteira. Uma outra folha, meio amassada, ainda tentou levantar voo, mas eu a travei com o pé. Pude perceber aquela mesma letra de chinês, dos velhos tempos dos campeonatos de botão, em que escrevia, à mão, com caneta nanquim, e colava com durex o nome de cada um dos jogadores do primeiro time do Flamengo que acompanhou campeão no Maracanã. De Renato, o Aranha, às vezes o Cantarelli, passando pelo gringo Doval, Geraldo, assobiador, que morreria dois anos depois, em 76, de uma mal contada operação de amígdalas. Zico, nem é preciso dizer, já se avizinhava um Monstro, Sagrado.

Se já era difícil entendê-la, a letra naquele papel que peguei do chão deve ter sido escrita por 28 quando a taxa estava alta. Havia virado uma espécie de garatuja e tinha alguma coisa a ver com Mao e o Flamengo, pois do que consegui decifrar havia um parágrafo em que começava dizendo do "camarada vermelho (e preto)", prosseguia indecifrável, ficava mais claro adiante quando vi que se tratava de um blog, ou algo semelhante:

"Este blog já tentou o prosélito, mas desistiu a tempo. Preferiu não aporrinhar - o que nos dá, pequenos burgueses infelizes, uma boa desculpa.
A divisão do trabalho conferiu ao suposto intelectual a ilusão de que vive fora da vida. Apenas fisicamente separado da produção, acredita que não mantém com ela vínculo algum. No máximo, um olhar generoso, solidário, entretanto, externo ao problema. O Zé roela crê firme que está livre dos mecanismos de exploração.
Com a Revolução Cultural, Mao acabou com a divisão do trabalho responsável pela ilusão que alienava. Todo mundo agora tinha de meter a mão na ferramenta. O trabalho intelectual se funde ao manual na produção da vida. Não há mais necessidade da separação entre os que trabalham e o os que pensam a respeito.
A sociedade virou horizontal, sem esquema tático, do goleiro ao ponta-esquerda."
É o seguinte, que é que importa: cinco anos sem fumar, sem beber. Só água. Mineral e com gás.
Doce? Sem chance."

Entreguei este manuscrito, a carteira e a receita de volta ao 28, que, de resto, não me reconheceu.

SRN

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