sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Ainda é melhor mudar de assunto


Por Tadeu dos Santos

- Aquela senhora de saia marron pegou duas senhas.

- Hein?

- Sim, ela pegou duas senhas, uma pra fila comum e outra pra destinada aos idosos. Acho isso errado, sabe? Você tem o direito de escolher. Pode pegar um ou outra, mas não é certo pegar as duas e depois ver qual fila anda mais rápido.

Aquela, bem o sabia, era uma terceira senha e destinava-se a tornar o andamento de ambas as filas suportável. Conheço filas e conheço conversas travadas em filas e assim mantive-me silente.

- Sou jornalista, sabe? Minha filha é funcionária da Justiça e está fazendo pós. Quando terminar já sai juíza ou promotora. Ela escolhe.

Bem sei que a coisa não funciona assim. No entanto, o desmentido representaria apenas e tão somente um passo dado em direção à arapuca que ele então me armava.

- Meu outro filho é engenheiro e o terceiro trabalha com eventos. Coisa fina, sabe? Já fez festa até pra Mayrink Veiga.

Ainda em silêncio lembrei-me de um recente encontro com colegas do antigo ginásio. Um deles disse que trabalhava com propaganda. Alguns goles depois a propaganda convolara-se em eventos. Mais alguns goles e os eventos foram ter às festas e daí aos meus salgadinhos são incomparáveis foi um pulo. À saideira ele maldizia as crianças e os velhos, seres dotados da capacidade de lançar por terra qualquer esforço festivo.

- Tenho uma sobrinha que passou recentemente pra advogada do BNDES. Saiba que não há nada melhor por aí do que trabalhar pro BNDES. Coisa fina, sabe? R$ 22.000,00 por mês. O marido também tentou mas não passou. Ela é superdotada, sabe? Pequenininha, olhando ninguém diz.

Ouvia tudo isso e pensava que à incapacidade de procriar segue-se um exacerbado cuidado com a prole. O homem tende a multiplicação. Há que se procriar. Se não mais o fazemos, lançamo-nos a garantir que nossos descendentes o façam. Talvez isso explique a cretinice do Nardoni-pai (e avô). No caso do “meu interlocutor” a procriação além de necessária era mais do que justa, afinal seus genes eram do caralho.

- Moro aqui perto, viu? Numa cobertura. Vejo todo o bairro lá de cima. Uma maravilha!

Imaginei o norteshopping, o Walmart, e o Engenhão. A periferia da minha visão buscava ler o número que a senha abrigava: 339. No painel lia-se: 335. Mais 4 números e as portas do Éden abrir-se-iam pra mim. Do outro lado, um homem com uma longa túnica branca cofiava a barba que de tão comprida não permitia que se divisasse seu término: Vês? Eis a bonança que se segue à tempestade...

- Trabalhei no Jornal do Brasil, no Correio da Manhã, na Rádio Mayrink Veiga. Montei o esquema da ...

Os lábios iam e vinham e eventualmente os dentes punham-se à mostra. As sobrancelhas pareciam acompanhar a narrativa. O inquieto olhar procurava pelos que estavam ao redor. Parecia querer saborear o efeito causado na assistência.

De minha parte nada tinha a contar. O dia de minha posse coincidiu com o início da contagem do tempo que demoraria para a aposentação. Tinha-a à conta de ideia fixa. Sonhava com o ócio, mas não o criativo de que fala Domenico de Masi. Queria o descompromisso, o nada fazer, o dormir e dormir e dormir. Morava no Méier, mas queria que fosse Paris. Não queria cobertura, mas a janela fechada que isola. Mais do que a imposição biológica a impor-me parentes, gostava do alvedrio da escolha dos amigos. Não tinha um sequer, mas ainda aí havia livre-arbítrio e isso não é pouco, não mesmo...

Amassei a senha que ainda trazia na mão que involuntariamente pôs-se lacrada, atirei-a à cesta de lixo e saí...

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