quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Bodas de Ouro

Por Álvaro Souza Franco

As bodas eram de ouro. Mais Feio nunca sabe direito, mas não importa. Pequeno-burguês é tudo igual. Como a história do galo. O galo tem um dono; o pequeno-burguês escuta o galo cantar, mas não sabe onde e, perdido, mas querendo fazer parte, se pendura em prestações ansiosas só para saber que ele canta. O endereço do galinheiro era, pois, na Vinte e Oito, uma churrascaria, uma pizzaria, um restaurante, em Vila Isabel. O mesmo lugar em que, alguns anos depois, seria uma boate exclusiva para lésbicas, endereço perto de cuja porta, aliás, quase fizera uma lambança.

A Nossa Senhora de Lourdes se iniciava com a chegada dos “Ramones”. A namorada de Mais Feio chegou logo. O olhar de reprovação pela camisa do Flamengo usada em hora, para ela, inapropriada. Ficar invisível é difícil. Passar suspenso, as carcaças enrugadas, viperinas, gravidades de “ducal”, apertadas na gravata que trava a garganta seca, crianças abortadas, pois não são crianças as que estão amarradas aos bancos por roupas de anão; estão rindo, o padre deve ter dito algumas daquelas graças.

O avô de Mais Feio havia sido jogador de pôquer, grande jogador, e o tio, noivo de Cristo:

“Eu, que já tenho três saias, agora terei a quarta.”

Não conhecera o avô. Sua namorada não para de falar. Também não escuta e martela, martela. Não encontra dificuldade para achar dona Maria, ela e suas cúmplices, ajustando o alvo sobre alguma vítima.

Acaba de chegar ao restaurante, à pizzaria, ou algo parecido; sua namorada, sentada ao seu lado, arranca-lhe das mãos um casal de bonecos que começa a desmontar sobre a mesa. De plástico ou de cera, refletem sem querer o que acontece:

“Mas esses putos são escrotos demais pra perceber.”

Uma mulher mais velha. Acha que lhe deu atenção. Aí, o último fragmento de registro: um cara alterado, vindo na sua direção, sua namorada arrastando-o, tudo escurecendo.

Pedro Ernesto.

“...de vários materiais consistem os detritos que boiam defronte dos olhos e cobrem a Baía, forcejando por asfixiá-la. Pedaços de eucatex, latas de leite condensado, pequenas, latas maiores de azeite e de óleo de cozinha, cascos de cerveja, garrafas de refrigerantes, de vidro, até do uísque que matou Bonham, cujo solo, em “Bonzo’s Montreux”, vai substituindo Hooker na cabeça, à medida que a barca manobra para atracar. Tanta sedução no matiz prateado do azul líquido, quanto na categoria de não apenas tocar com os pulsos, mas ainda beber direito, e bebendo, um dia não mais voltar, por asfixia. A morte, de ambas as quais – tanto a da Baía de Guanabara, quanto a de John Bonham – nada se diga, nada se escreva, sob o risco de pieguismo...”

“O segurança, travando a nossa entrada, na perscrutação do óbvio, encerrou a palhaçada do marinheiro, amigo da mãe do Nylon. Distante poucos anos das bodas. Hoje, entretanto,não mais me aporrinham... o sobrado barato, onde se trepava barato, com qualquer uma das que levantavam a saia ou arriavam a calça, afastando a calcinha, e mijavam agachadas no térreo, na poça de urina com amônia, no corredor aberto para o banheiro do lado de fora.... “

“Quem já era veterano era o marinheiro, que comia a mãe do Cebola e que teve a infeliz idéia da boate, depois de encher os cornos, na calçada do botequim lotado pelo tumulto do mocotó que, segundo ele, lambendo os beiços, cuspindo a farofa com elogios de que não havia nada melhor, toda vez que estava desembarcado no Rio. Eu ainda era mais magro, devia pesar uns sessenta quilos; o cara, além de maior, parecia um muro pixado com uma tatuagem de uma âncora no braço direito. Não havia fumado nada. Só cerveja que tomara com o Cebola, a quem encontrara na Silva Teles, quando eu voltava da casa da minha namorada. Já pancado, o marinheiro, na roda do mocotó, se mostrava um cagador de goma. Bastou nos ver que foi batendo no peito do Cebola:

“A mãe desse moleque sabe disso. Só goza comigo. Por isso é que esse moleque é burro desse jeito.”

“Você é casado, meu irmão?”

O marinheiro não entendeu nada e ficou por instantes me avaliando: se me metia logo a porrada, acabando com a petulância daquele magrela, se não passava recibo, concentrando-se no mocotó e na meia dúzia de cervejas que o dono do botequim trazia em substituição ao velho barreiro.

“Você é casado, meu irmão? – tornei a perguntar.

“ Qual é a tua moleque?”

Achei que o marinheiro não iria aguentar e viria pra dentro. Ainda assim, não resisti e continuei, metendo uma história ocorrida com o meu pai na padaria:

“Tinha um cara que todo dia passava na padaria do meu pai. Comprava duzentos gramas de mortadela, três pães franceses, pedia umas sobras de bolinho de aipim pro cachorro e ficava por lá batendo papo. Então, entrava uma mulher, o cara olhava e, depois que ela saía, dizia pro velho que tinha comido. Entrava a segunda, entrava a terceira, o cara tinha comido. Comeu tanta gente que o velho não segurou a onda e perguntou: e a tua mulher, quem é que come? Não leva a mal. Deu pra notar que, se for casado e apesar de comer muita gente, você tem pouco tempo pra tua mulher.”

A enfermeira pergunta ao Mais Feio alguma coisa. Este não sabe ao certo, parecia que lia a própria cabeça como num livro. Passaram-se quantos anos, até esta sexta de 1996? Aquilo era quando? Que fim levou minha camisa do Flamengo?

“Existe no álcool uma espécie de espírito engarrafado. Quem bebe sabe do que eu estou dizendo e do fio por que fica comentários e situações, que, não atuasse esse espírito, terminariam muitas vezes em conflitos, cascos partidos dentro de carnes flácidas e mármores quebrados e espalhados até no meio da rua. No meu caso seriam ossos, se o marinheiro não se tivesse imposto uma súbita humildade e me apertado num abraço ostentando uma gargalhada de cachaça e mocotó.

“Tu é dos meus, garoto. Tô sabendo duma boate de sapatão ali na Vinte e oito. Vamos nessa.”

Falastrão mais do que valente, meteu o rabo entre as pernas quando o segurança nos barrou à entrada. Resolveu descontar a raiva que sentiu, e que não pode extravasar. Dei sorte, provavelmente protegido pelo espírito da garrafa: ao correr atrás de mim, rodando em torno de um sp2, parado na esquina, o marinheiro escorregou e caiu, oferecendo-me os cornos. Meu sapato de bico fino tinha uma parte mais dura na ponta, àquela época eu ainda usava essas merdas. Tive pena. Ao invés de bicar-lhe os cornos, fui embora pra Torres Homem.”

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