quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Anti-Cipaísmo Rubro-Negro

Sem chance gastar vela com defunto barato. Com gaúcho que quer virar paulista quando crescer, então, o negócio é só fazer o registro, no sinal de vida que merece só porque cruzou com o Flamengo: 2 x 2.

O voo de volta, porém, é uma oportunidade para a Nação Maior refletir, sem triunfalismo, mas, longe do provincianismo deslumbrado que, felizmente, sempre passou longe da Gávea, a despeito de todos nossos defeitos. A rota do voo é importante porque faz a diferença justamente entre essas aporrinholas. Aqui a vida inteligente é Rubro-Negra. Não era à toa que o mineiro Darcy Ribeiro, que passava os fins de semana em Maricá, era Flamengo.

Gilberto Vasconcellos é sociólogo e vale ler o que escreveu pra Revista Projeto História / Projeto História, São Paulo, n.36, p. 313-326, jun. 2008:


"O problema é que a soberania nacional foi considerada uma meta impossível de ser atingida. A universidade brasileira, por recalcar o nacionalismo como estratégia de superar o atraso e a miséria, está enferma, por isso colocou no ostracismo Darcy Ribeiro, que é um dos mais importantes cientistas sociais da América Latina. Ele dizia que a confusão teórica (considerar, por exemplo, Leonel Brizola como “populista”) levaria ao equívoco político; afi nal, a meta do nacionalismo trabalhista não era apenas a de melhorar a ordem vigente, e sim a de subvertê-la e transformá-la. O patronato local é o seu principal adversário, vinculado ao latifúndio, fazendo contato com as empresas estrangeiras que superexploram o trabalho. A burguesia brasileira está contente com a tutela do capital estrangeiro. A parte do leão cabe à multinacional fi nanceira, tendo como integrantes menores o capital industrial e os bancos nativos. Estes, sozinhos, não têm condições de imprimir uma política própria ao Estado com um efetivo comando. Não existe, a rigor, um capitalismo fi nanceiro periférico que seja autônomo, assim a fi nança estrangeira ocupa
o Banco Central. Todos os governantes se curvam diante do capital estrangeiro, tido como agente civilizador e fator de progresso, quando, na verdade, é a causa fundamental da existência de massa excedentária, impossibilitada de arrumar emprego e que se situa abaixo da classe operária. Quanto mais desenvolve o pólo multinacional, mais aumenta o pólo de marginalizados e despojados, os quais o brizolismo queria converter em força política, não se limitando ao proletariado.

É, sem dúvida, sintoma do colonialismo interno que o nacionalismo trabalhista tivesse sido derrotado eleitoralmente em São Paulo, que é a sede da indústria recolonizadora sob a égide das multinacionais. Darcy Ribeiro se valeu da categoria “industrialização recolonizadora”8 para explicar o progresso ingeneralizável a toda população. O progresso regido pelos interesses das multinacionais é necessariamente confi nado e excludente, responsável por uma “modernização refl exa”, que é empreendida por pacotes tecnológicos exógenos que reproduzem os fatores do atraso. Segundo Darcy Ribeiro, a modernização refl exa “fez de nós proletários externos de outros povos”. A industrialização recolonizadora, com as multinacionais dentro de casa e sediadas em São Paulo, impõe novas formas de dependência, trazendo “os frutos e não as sementes do saber e da tecnologia”.

Esse saber empacotado, hoje cybernetizado e informatizado, é a fina flor do colonialismo que apresenta o subdesenvolvimento como uma fatalidade. A modernização reflexa – ou o progresso reflexo – é uma faceta do colonialismo interno, teorizado brilhantemente por Rodolfo Stavenhagen10: o colonialismo interno é o imperialismo posto em ação regional. Esse colonialismo interno, sob a égide da industrialização multinacional, engendra uma superestrutura cultural (midiática e universitária) que justifica a existência da metrópole colonial satelitizada pelo sistema capitalista mundial. A metrópole colonial se vangloria, ainda que com um narcisismo também refl exo e mímico, de ser o berço das fábricas multinacionais. Darcy Ribeiro mostrou que a função ideológica do colonialismo interno, representado por São Paulo, é limpar a nódoa espoliativa do imperialismo norteamericano, o qual é a idealizado, edulcorado, convertido em dispositivo fi lantrópico aos olhos da pequena burguesia universitária com suas becas e barretes honoris causa. Para a sociologia cipaia (cipaismo é a defesa do setor economicamente privilegiado estrangeiro), quanto mais São Paulo conectar-se às áreas cêntricas mundiais, tanto melhor é para o bem estar intra-regional. Dessa maneira, o que é bom para São Paulo é bom para o Brasil. De Sarney a Lula, todos os governos têm feição paulistocêntrica. Esse paulistocentrismo cultural é o refl exo da internacionalização do país sob a hegemonia dos estamentos multinacionais, que são coadjuvados pela burguesia industrial e fi nanceira nativas. A anatomia do capitalismo videofi nanceiro revela que o centro econômico do país é São Paulo, enquanto a televisão dominante situa-se no Rio de Janeiro.11 A telenovela produziu o esquecimento do golpe de 64. O ex-diplomata Adriano Benayon, crítico do capitalismo videofi nanceiro e dos intelectuais cipaios porta-vozes do colonialismo interno, formulou o seguinte apotegma: “Nada é mais prejudicial à economia de um país que se juntar ao centro ou ter com ele boas relações”.12

De Montevidéu, exilado pelo golpe de 1964, Darcy Ribeiro enviava o recado para os intelectuais de São Paulo seduzidos pelas pesquisas brasilianistas: o tabu é a questão nacional. 13 O cipaísmo intelectual paulista, que medra tanto nas hostes tucanas quanto nas petistas, considera o sagrado capital estrangeiro como um acelerador do desenvolvimento nacional. Com as multinacionais operando com todas as regalias dentro de casa, sucedeu um fenômeno estranhíssimo na cultura brasileira: o imperialismo norte-americano tornou- se invisível, deixou de ser um incômodo sob a vigência da democracia. O trabalhismo nacionalista foi vencido, assim como se tentou diuturnamente desmoralizar a idéia de que produzimos para promover a prosperidade das metrópoles. Essa situação espoliativa, que nos condena ao atraso e à miséria, deixou de ser o critério para caracterizar a posição política de direita.

Ainda não foi esclarecido o espantoso conformismo intelectual e artístico diante do capital monopolista estrangeiro. Yes, São Paulo, yes, outrora plantou-se banana fruit na América Latina, agora plantamos indústria for export. Com as exceções de praxe, a intelectualidade paulista, tal qual o proletariado das nações opressoras, extrai vantagens materiais do colonialismo interno, portanto difi cilmente aprofunda o conhecimento acerca do signifi cado da internacionalização do país. O intelectual subprivilegiado da metrópole colonial apresenta-se, para usar a linguagem oswaldiana, como o garçom de costeleta no banquete ovíparo da globalização. A tecnologia transferida do país avançado para o país atrasado é o mais recente pacote da ideologia colonialista, tendo por vetor a televisão como aparato técnico que é igual em todo lugar do mundo.

O capitalismo videofi nanceiro hiperbolizou a função ideológica do colonialismo interno na cultura. É por isso que inexiste mímese na qual apareça retratado o estamento das multinacionais. Resulta daí o paradoxo da invisibilidade do que está escancaradamente visível: o domínio exógeno. A incumbência universitária do colonialismo interno é mostrar que a antítese centro/periferia desmanchou-se com a industrialização orientada para a exportação. É que nessa etapa de expansão do capitalismo monopolista nas sociedades subdesenvolvidas a unidade produtiva principal é a corporação estrangeira, que se instala no país receptor visando ao mercado externo. O que triunfou, o que venceu como razão sociológica, repetia o estribilho da campanha eleitoral de FHC, foi o Brasil multinacional em aliança com a oligarquia agrobusiness. Destarte esse poder econômico e cultural consagrou-se pelo voto direto desde Collor, portanto é legítima a democracia dirigida pelas corporações estrangeiras. Assim, poder-se-ia afi rmar que, na fase de exportação de capital, o imperialismo por aqui era algumas vezes objeto de ódio e iracúndia, mas depois que suas fábricas instalaram-se dentro do país tornou-se de casa, ou senão alguma coisa que não atrapalha nossa vidinha cotidiana. Essa é a ideologia dos empresários nativos que se privilegiam ao fi carem sócios menores do capital estrangeiro, abdicando do papel de sujeito autônomo e sem nenhum constrangimento de integrarem uma classe social subalterna e desnacionalizada. Com o espetáculo midiático da democracia, aplaude-se a política antinacional do golpe de 1964 mediante a privatização internacional do território.

A vassalagem desejada é o traço marcante da cultura no Brasil do século XXI. O marxismo e o nacionalismo desaparecem dos currículos das universidades, os intelectuais exibem sem pudor o “discurso dos saciados”14, junto com o cinismo e a resignação acerca da impossibilidade de incorporar a maioria da população ao mercado de trabalho. O que se verifica nesta atitude vassala é sua simetria com o que está ocorrendo com o país, cada vez mais submetido a um de colonialismo cósmico, com a destruição progressiva do Estado."

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