sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Varnhagen Sentiu o Púbis


Por Ameríndio Sevilha

Como conciliar a construção da identidade nacional, seus mitos e representações, em uma terra de índios e negros, com a orientação iluminista de um projeto civilizatório de progresso branco e europeu?

Uma pergunta cuja resposta pode ser encontrada nas marcas do dezenove, das condições de transformação da produção historiográfica e que encerrava vício, virtudes e limites de um víes romântico que se afirmava.

O lugar brasileiro de construção do discurso historiográfico nacional é exatamente o IHGB, fundado em 1838, tributário ao modelo europeu das academias ilustradas organizadas com base nas relações sociais de cúpula, no evidente elitismo de caráter iluminista. Portanto, a discussão da identidade nacional, na consolidação do Estado Imperial no Brasil, não poderia apresentar-se senão marcado por um elitismo nasciturno, em que o saber se vê sacrificado ao panegírico típico de uma trama de relações de corte, marcadas pelo favor do privilégio. A história aqui produzida gira em torno do Estado Imperial e do que interessa ao âmbito estrito de uma elite letrada cortesã. O recorte enunciado ganha ainda mais nitidez ao se verificar que a ideologia que sustenta o projeto de construção identitária da nação brasileira certamente deve se abster de inconvenientes. A questão nacional – tema candente na Europa – deveria evitar aqui a escravidão e a população indígena, sem embargo aos mitos românticos provenientes da natureza e que cumpririam a função específica de ilustrar certos mitos de origem. Dificuldade anunciada pelo próprio José Bonifácio, já em 1813: “... amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios, etc, etc, etc, em um corpo sólido e político.”

Impõe-se o método iluminista: esclarece-se primeiro a cúpula, para, posteriormente, passar ao resto. Ponto central da historiografia que irá orientar a identidade nacional, tanto interna, quanto externamente. Sua particularidade está na ausência de ruptura: a nação brasileira é pensada como continuidade do processo civilizatório iniciado pela metrópole portuguesa. Nação, Estado e Coroa: ao contrário da Europa, em que a nação e o Estado afirmam-se distintamente. A identidade brasileira pretende-se um legado da civilização européia.

A metáfora de “povos irmãos” é uma estratégia de reforçar a ideia de continuidade, ao invés da ruptura. Relevantes de consequências, a continuidade presente na articulação Nação / Estado / Coroa, ao marcar uma concepção em academia de elite, excluía não só , do ponto-de-vista interno, todos aqueles que não se inscreviam em condições ao exercício civilizatório definido: negros e índios, mas também, politicamente, no que respeita a nossa diplomacia, relativamente à percepção de constituirmos um extrato superior sob a forma de monarquia em antítese à barbárie republicana, adotada no resto do continente.

Adiante, nas três primeiras décadas do século XX, o que no projeto identitário imperial era um entrave – o “amálgama inviável” – na república, particularmente às vésperas e durante o Estado Novo, é a solução através de uma suposta confraternização num projeto coletivo de democracia racial. Numa palavra: harmonia.

Era a questão nacional em face também a um novo problema, agora posto pelo sistema de produção capitalista: a emergência e o encaminhamento das massas, sem por em risco o regime da propriedade. A democracia racial, apresentada no livro de Mário Filho, “O Negro no Futebol brasileiro”, como uma expressão do nosso futebol, ameniza atritos e mantém velada a discriminação de hábito. Sua estratégia é a contenção, para a colaboração de classes, servindo de opção de encaminhamento da massa nacional mestiça e negra. Estratégia tributária à de Vanhargen, quando da fundação do IHGB, um século antes, que não via no negro capacidade para a civilização e que nela só integrar-se-ia sob uma forma subordinada, subalterna. Esta é uma abordagem crítica, em campo distinto ao do Núcleo da UERJ , cujo trabalho sobre o futebol brasileiro recebe Mário Filho como referencial.

Antônio Soares, que a sustenta, insiste também que Mário Filho escreveu um manual de instrução. Seu objetivo é apontar a presença de Gilberto freyre, a quem considera o ideólogo responsável pelo projeto da democracia racial. Freyre mandava e o resto escrevia. Mário Filho seria justo um desses redatores. Lendo-o, aprende-se a ser brasileiro, na integração nacional e étnica via futebol. Como se o futebol fosse o locus, por excelência, do cancelamento da luta de classes.

Soares é, de fato um crítico ácido. Pejorativamente, chama os pesquisadores do Núcleo de “novos narradores” ( conforme classificação de Hobsbawm para o problema da identidade nacional ), mais literatos do que cientistas. Apenas atualizam o projeto identitário da democracia racial, estabelecido por Freyre. E não cabe às ciências sociais coonestar nenhum discurso. Tem de expor-lhe as mazelas, desvelar seus mecanismos de dominação.

Talvez esteja errado. Na perspectiva marxista, à crítica não cabe apenas apontar defeitos, mas também ser propositiva, ao confrontar a realidade com a sua razão de ser não aparente. Escreveu Marx que a crítica demonstra como a razão já está presente:

“A razão sempre existiu, mas nem sempre sob a forma racional. A crítica pode, então, partir de qualquer forma do conhecimento teórico ou prático, das formas próprias da realidade existente, desenvolver a realidade verdadeira como finalidade e objetivo.” (ARON, 2005: 74)

Talvez em Freyre, dialeticamente, a síntese.

SRN

ARON, Raymond. O Marxismo de Marx. São Paulo: Arx, 2005

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Rio de janeiro: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 5-27. Disponível em : >http:// www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/26.pdf

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