terça-feira, 24 de março de 2015

Ditadura? Ninguém Sabe, Ninguém Viu



A relação entre História e Memória é hoje tema central na historiografia. Assim, do circo de horrores do domingo 15, mais do que a abjeção de um torturador e assassino afagado por jovens como um vovô herói de fim de semana, a ladainha dominante no senso comum verificado é o que martela, insistente:

“Quem era direito e trabalhava não sofreu nada com os militares.”

Lendo a bibliografia recente sobre o tema, por exemplo, em Janaina Cordeiro, “Anos de Chumbo ou Anos de Ouro? A memória social sobre o governo Medici”, artigo publicado na Revista Estudos Históricos (cujo link segue abaixo), da Fundação Getúlio Vargas, é possível notar como, para além do “binarismo maniqueísta” – resistência x colaboração; “Estado opressor x sociedade vitimizada” – , há uma série de matizes comportamentais, embora não significassem unanimidade, tampouco caracterizassem homogeneidade, que acabaram por produzir uma espécie de consenso social em relação à ditadura.

Entretanto, segundo Janaina, referenciando posições de outros historiadores, a memória coletiva que prevaleceu foi, paradoxalmente, a dos vencidos, como se a ditadura se tivesse imposto sobre uma sociedade vítima, em silêncio resistente, submetida a mecanismos de coerção – o único meio de sustentação daquela.

“Os militares, por sua vez, chamam atenção para o fato de que ‘uma vez derrotada, a esquerda esforçou-se por vencer, na batalha das letras, aquilo que perdeu no embate das armas’ (Martins filho, 2002).”

Confesso que não era uma experiência confortável reconhecer a validade do que lia, não apenas em Janaina, mas em vários outros historiadores que buscavam fugir do preto e branco e investigar o cinza matizado, complexo, perturbador, capaz de constrangimentos. Minha impressão, de imediato, era taxar, concluindo com aqueles que classificam tal esforço historiográfico de biombo de justificação do golpe 64 e da ditadura que se lhe seguiu: revisionismo de direita.

Até o circo de horrores do dia 15. Como explicá-lo? Ou tentar explicá-lo à base da manipulação midiática, já que faltava o elemento da coerção presente nas comemorações do Sesquicentenário da Independência, promovido pela ditadura em 1972, objeto do artigo de Janaina Cordeiro para avaliação do “consentimento social em relação ao regime”?

É pouco: a mídia pode muito, pode desestabilizar como vimos em Jango, como vemos agora com a Dilma, mas, pra isso, aproveitou-se, com o caráter oportunista que a caracteriza, da quantidade de impasses consideráveis, tanto ontem, como hoje.  O domingo 15 talvez tenha sido pior do que a adesão que contou com o apoio de relevantes associações civis e forte participação popular nos eventos públicos do  Sesquicentenário da Independência. Certamente, pois era explícita a legitimidade conferida à violência como método político. Em 72, a ditadura ainda poderia seduzir.

Não estaria, portanto, na ladainha dominante no circo de horrores do último dia 15 – “quem era direito e trabalhava não sofreu nada com a ditadura” - uma hipótese de investigação para as perguntas de Janaina na transcrição abaixo de trecho do seu artigo?

“Algumas perguntas se colocam quando refletimos a respeito da memória social construída sobre o governo Médici: se foram também, e para muitos, anos de ouro, porque a memória coletiva lembra o período apenas pelo espelho dos anos de chumbo? Por que se multiplicam relatos de resistências, como, por exemplo, o do grupo de jovens paulistas pertencentes à “classe média intelectualizada” que se reuniu para torcer contra a seleção brasileira de futebol na final da Copa do Mundo de 1970 (Almeida e Weiss, 1998)? Por que tantos relatos de resistências cotidianas, esvaziando, num certo sentido, o significado da luta dos grupos organizados contra o regime e o próprio significado do termo resistência? Por que os silêncios, inúmeros,sobre a adesão social à ditadura? Sobre o entusiasmo “alucinante” que caracterizou os anos do Milagre? Sobre a identificação de importantes parcelas da sociedade com os valores postulados pela ditadura, que foi,antes de tudo, civil-militar? Por que se calaram as vozes que descreviam o sagitariano presidente Médici como uma pessoa “(...) de bom coração, leal, (...) inclinada à caridade, benevolência e Justiça, aos assuntos religiosos e místicos, filosóficos, filantrópicos e intelectuais” (O Cruzeiro, janeiro de 1972)? Onde estão as mãos que o aplaudiam em estádios lota dos? Enfim, por que as imagens dos anos de chumbo, abordadas sob uma perspectiva que vitimiza os grupos de esquerda – cujo projeto de enfrentamento ar ma do a sociedade não compartilhava –, são eleitas como a memória desse tempo? Por que o silêncio em torno dos anos de ouro?”

SRN


http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1546/1008

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