A
relação entre História e Memória é hoje tema central na historiografia. Assim,
do circo de horrores do domingo 15, mais do que a abjeção de um torturador e
assassino afagado por jovens como um vovô herói de fim de semana, a ladainha
dominante no senso comum verificado é o que martela, insistente:
“Quem
era direito e trabalhava não sofreu nada com os militares.”
Lendo
a bibliografia recente sobre o tema, por exemplo, em Janaina Cordeiro, “Anos de
Chumbo ou Anos de Ouro? A memória social sobre o governo Medici”, artigo
publicado na Revista Estudos Históricos (cujo link segue abaixo), da Fundação
Getúlio Vargas, é possível notar como, para além do “binarismo maniqueísta” –
resistência x colaboração; “Estado opressor x sociedade vitimizada” – , há uma
série de matizes comportamentais, embora não significassem unanimidade,
tampouco caracterizassem homogeneidade, que acabaram por produzir uma espécie
de consenso social em relação à ditadura.
Entretanto,
segundo Janaina, referenciando posições de outros historiadores, a memória
coletiva que prevaleceu foi, paradoxalmente, a dos vencidos, como se a ditadura
se tivesse imposto sobre uma sociedade vítima, em silêncio resistente,
submetida a mecanismos de coerção – o único meio de sustentação daquela.
“Os
militares, por sua vez, chamam atenção para o fato de que ‘uma vez derrotada, a
esquerda esforçou-se por vencer, na batalha das letras, aquilo que perdeu no
embate das armas’ (Martins filho, 2002).”
Confesso
que não era uma experiência confortável reconhecer a validade do que lia, não
apenas em Janaina, mas em vários outros historiadores que buscavam fugir do
preto e branco e investigar o cinza matizado, complexo, perturbador, capaz de
constrangimentos. Minha impressão, de imediato, era taxar, concluindo com
aqueles que classificam tal esforço historiográfico de biombo de justificação
do golpe 64 e da ditadura que se lhe seguiu: revisionismo de direita.
Até
o circo de horrores do dia 15. Como explicá-lo? Ou tentar explicá-lo à base da
manipulação midiática, já que faltava o elemento da coerção presente nas
comemorações do Sesquicentenário da Independência, promovido pela ditadura em
1972, objeto do artigo de Janaina Cordeiro para avaliação do “consentimento
social em relação ao regime”?
É
pouco: a mídia pode muito, pode desestabilizar como vimos em Jango, como vemos
agora com a Dilma, mas, pra isso, aproveitou-se, com o caráter oportunista que
a caracteriza, da quantidade de impasses consideráveis, tanto ontem, como
hoje. O domingo 15 talvez tenha sido
pior do que a adesão que contou com o apoio de relevantes associações civis e
forte participação popular nos eventos públicos do Sesquicentenário da Independência.
Certamente, pois era explícita a legitimidade conferida à violência como método
político. Em 72, a ditadura ainda poderia seduzir.
Não
estaria, portanto, na ladainha dominante no circo de horrores do último dia 15
– “quem era direito e trabalhava não sofreu nada com a ditadura” - uma hipótese
de investigação para as perguntas de Janaina na transcrição
abaixo de trecho do seu artigo?
“Algumas
perguntas se colocam quando refletimos a respeito da memória social construída
sobre o governo Médici: se foram também, e para muitos, anos de ouro, porque a
memória coletiva lembra o período apenas pelo espelho dos anos de chumbo? Por
que se multiplicam relatos de resistências, como, por exemplo, o do grupo de
jovens paulistas pertencentes à “classe média intelectualizada” que se reuniu
para torcer contra a seleção brasileira de futebol na final da Copa do Mundo de
1970 (Almeida e Weiss, 1998)? Por que tantos relatos de resistências
cotidianas, esvaziando, num certo sentido, o significado da luta dos grupos organizados
contra o regime e o próprio significado do termo resistência? Por que os
silêncios, inúmeros,sobre a adesão social à ditadura? Sobre o entusiasmo “alucinante”
que caracterizou os anos do Milagre? Sobre a identificação de importantes
parcelas da sociedade com os valores postulados pela ditadura, que foi,antes de
tudo, civil-militar? Por que se calaram as vozes que descreviam o sagitariano
presidente Médici como uma pessoa “(...) de bom coração, leal, (...) inclinada
à caridade, benevolência e Justiça, aos assuntos religiosos e místicos,
filosóficos, filantrópicos e intelectuais” (O Cruzeiro, janeiro de 1972)? Onde
estão as mãos que o aplaudiam em estádios lota dos? Enfim, por que as imagens
dos anos de chumbo, abordadas sob uma perspectiva que vitimiza os grupos de
esquerda – cujo projeto de enfrentamento ar ma do a sociedade não compartilhava
–, são eleitas como a memória desse tempo? Por que o silêncio em torno dos anos
de ouro?”
SRN
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1546/1008
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