quarta-feira, 18 de março de 2015

"Esquecimento das Memórias": comentários sobre o texto de Denise Rollemberg



Denise Rollemberg é uma historiadora incômoda, o que já é recomendável. A primeira reação, impressiva, produz uma má vontade que vem mais da vontade de militante político do que a de um analista que se obriga a pensar com lucidez.

Começam as perguntas:

“Por que os militares voltaram aos quartéis clamando à sociedade o esquecimento? [ou seja, por que na disputa de memórias foram os vencidos que venceram?] Por que a sociedade que não se interessou pela luta armada hoje se interessa por conhecê-la? Será que os inúmeros depoimentos não foram capazes de formular questões essenciais? Seriam as perguntas por serem feitas que impulsionam a publicação de novos títulos?”

Denise pensa a centralidade da versão de Gabeira. Para Daniel Aarão Reis, segundo ela, a unanimidade de recepção se deve à “conciliação que encerra” e que é tributária à articulação que levaria, naquele mesmo ano de publicação do livro, “O que é isso companheiro?”, 1979, aos acordos políticos da Lei de Anistia.

A conciliação presente no livro de Gabeira remete, de imediato,  a uma das referências nos estudos da articulação entre História e Memória: “O que é isso companheiro?” viria, pois,  ao encontro da “organização do esquecimento”, proposto por Paul Ricoeur. Uma ilação inevitável da leitura do texto de Denise, uma vez que a pedra no passado evitaria a expiação pública de feridas então muito incômodas e constrangimentos bastante inconvenientes.

A descrição do quadro que induz a conclusão não é, entretanto, motivo de constrangimento. Para as esquerdas, a ditadura só se impunha pela repressão e,uma vez desmascarada, levaria as massas a aderir à luta armada para derrubá-la. Indispensável dar sentido à ação dos que morreram, foram presos, torturados. Os que sobreviveram têm esse dever, e a memória de referência não pode ser outra senão a que estipulara Halbwachs: a “memória coletiva”, comum, que “produz coesão social não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, à comunidade afetiva”.

Tal quadro de memória da militância sofre um duro golpe quando surge a História oral, para à qual a memória coletiva é opressora e marginaliza a divergência, o excluído sem voz. “A História oral reabilita a periferia e a marginalidade acentuando o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional.”

Paradoxalmente, a memória dos vencidos torna-se coletiva, homogeneizante, contra todas as demais, tanto as que existem no interior das próprias esquerdas, quanto as que circulam por todo o corpo social.

O que se viu, no domingo passado, porém, é que a memória vitimizante da sociedade não é assim tão unânime. A ditadura parecia absolvida, comprovando sua condição de produto social, com amplo apoio, e não o deslocamento de sentido de que a sociedade havia sido, exclusivamente, vítima, resistente.

O domingo que passou torna o livro do Gabeira mais do que datado. Demonstra como havia no interior da militância da luta armada vozes que “não participaram da construção da sua memória.” Segundo Denise, o público conheceu a história desconhecida da luta armada através de quem não a conheceu, devido a própria posição secundária do narrador, mas que, em seu livro, tudo e todos viram sombras, só ele é persoangem. E cita 
Serge Berstein:

“Na ordem da cultura política, é a lenda que é a realidade, pois é ela que é mobilizadora e determina a ação política concreta, à luz da representação que ela propõe.”

A sombra à que se reduziam personagens e situações era a substância literária que fez do livro de Gabeira o material, por excelência, da necessidade do esquecimento. Ou seja, o livro vale pelo que não mostra.

As perguntas que ainda estão por ser feitas – acredita Denise – não conseguem formulação por insistência numa determinada visão da sociedade. Repressão, manipulação, desinformação, ignorância. A sociedade sempre é vítima, na reiteração do cerne do argumento.

Uma das explicações que permanece é que a lógica da luta armada exigia, num primeiro momento, o trabalho clandestino de vanguarda “num quadro de intensa repressão”.

Talvez seja difícil, ainda hoje, tanto tempo decorrido do fim da ditadura, ver na população, mais do que a indiferença típica das maiorias, a aceitação e cumplicidade relativamente a um regime como produto social. Para além do desconhecimento, por mais que se explique, o problema continua, pois a compreensão exige outros enfoques, menos simplistas, certamente, desagradáveis. A começar pelo autoritarismo presente na sociedade brasileira. A manifestação de domingo não revela ignorância. A violência foi aprovada como método político: bonecos da Dilma e do Lula pendurados enforcados, coturnos, uniformes militares de guerra, faixas pedindo repressão e justificando a tortura, até uma ridícula figura, caquética e degradada, de agente do Dops subindo a um dos carros de som, ovacionado, para dizer de suas bravatas como torturador e assassino.

De que adianta, então, mexer no sistema de comunicação do país se o problema não se esgota na manipulação nem no controle midiático? Simplismo? Auto-engano recorrente?

Exatamente por tudo o que foi dito antes: a complexidade do problema se deve a sua multicausalidade, entre os quais o controle dos meios de comunicação por grupos de dominação históricos. Estabelecer um marco regulatório que discipline tamanhas organizações empresariais de comunicação é indispensável à construção de um espaço público de produção crítica a um autoritarismo latente, histórico, sempre à espreita do golpismo.

SRN

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