Denise Rollemberg é uma historiadora incômoda, o que já é recomendável. A primeira reação, impressiva, produz uma má vontade que vem mais da vontade de militante político do que a de um analista que se obriga a pensar com lucidez.
Começam
as perguntas:
“Por
que os militares voltaram aos quartéis clamando à sociedade o esquecimento? [ou
seja, por que na disputa de memórias foram os vencidos que venceram?] Por que a
sociedade que não se interessou pela luta armada hoje se interessa por
conhecê-la? Será que os inúmeros depoimentos não foram capazes de formular
questões essenciais? Seriam as perguntas por serem feitas que impulsionam a
publicação de novos títulos?”
Denise
pensa a centralidade da versão de Gabeira. Para Daniel Aarão Reis, segundo ela,
a unanimidade de recepção se deve à “conciliação que encerra” e que é
tributária à articulação que levaria, naquele mesmo ano de publicação do livro,
“O que é isso companheiro?”, 1979, aos acordos políticos da Lei de Anistia.
A
conciliação presente no livro de Gabeira remete, de imediato, a uma das referências nos estudos da articulação
entre História e Memória: “O que é isso companheiro?” viria, pois, ao encontro da “organização do esquecimento”,
proposto por Paul Ricoeur. Uma ilação inevitável da leitura do texto de Denise,
uma vez que a pedra no passado evitaria a expiação pública de feridas então
muito incômodas e constrangimentos bastante inconvenientes.
A
descrição do quadro que induz a conclusão não é, entretanto, motivo de
constrangimento. Para as esquerdas, a ditadura só se impunha pela repressão
e,uma vez desmascarada, levaria as massas a aderir à luta armada para
derrubá-la. Indispensável dar sentido à ação dos que morreram, foram presos,
torturados. Os que sobreviveram têm esse dever, e a memória de referência não
pode ser outra senão a que estipulara Halbwachs: a “memória coletiva”, comum,
que “produz coesão social não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, à
comunidade afetiva”.
Tal
quadro de memória da militância sofre um duro golpe quando surge a História
oral, para à qual a memória coletiva é opressora e marginaliza a divergência, o
excluído sem voz. “A História oral reabilita a periferia e a marginalidade
acentuando o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva
nacional.”
Paradoxalmente,
a memória dos vencidos torna-se coletiva, homogeneizante, contra todas as
demais, tanto as que existem no interior das próprias esquerdas, quanto as que
circulam por todo o corpo social.
O
que se viu, no domingo passado, porém, é que a memória vitimizante da sociedade
não é assim tão unânime. A ditadura parecia absolvida, comprovando sua condição
de produto social, com amplo apoio, e não o deslocamento de sentido de que a
sociedade havia sido, exclusivamente, vítima, resistente.
O
domingo que passou torna o livro do Gabeira mais do que datado. Demonstra como
havia no interior da militância da luta armada vozes que “não participaram da
construção da sua memória.” Segundo Denise, o público conheceu a história
desconhecida da luta armada através de quem não a conheceu, devido a própria
posição secundária do narrador, mas que, em seu livro, tudo e todos viram
sombras, só ele é persoangem. E cita
Serge Berstein:
“Na
ordem da cultura política, é a lenda que é a realidade, pois é ela que é
mobilizadora e determina a ação política concreta, à luz da representação que
ela propõe.”
A
sombra à que se reduziam personagens e situações era a substância literária que
fez do livro de Gabeira o material, por excelência, da necessidade do
esquecimento. Ou seja, o livro vale pelo que não mostra.
As
perguntas que ainda estão por ser feitas – acredita Denise – não conseguem
formulação por insistência numa determinada visão da sociedade. Repressão,
manipulação, desinformação, ignorância. A sociedade sempre é vítima, na
reiteração do cerne do argumento.
Uma
das explicações que permanece é que a lógica da luta armada exigia, num
primeiro momento, o trabalho clandestino de vanguarda “num quadro de intensa
repressão”.
Talvez
seja difícil, ainda hoje, tanto tempo decorrido do fim da ditadura, ver na
população, mais do que a indiferença típica das maiorias, a aceitação e
cumplicidade relativamente a um regime como produto social. Para além do
desconhecimento, por mais que se explique, o problema continua, pois a
compreensão exige outros enfoques, menos simplistas, certamente, desagradáveis.
A começar pelo autoritarismo presente na sociedade brasileira. A manifestação
de domingo não revela ignorância. A violência foi aprovada como método
político: bonecos da Dilma e do Lula pendurados enforcados, coturnos, uniformes
militares de guerra, faixas pedindo repressão e justificando a tortura, até uma
ridícula figura, caquética e degradada, de agente do Dops subindo a um dos
carros de som, ovacionado, para dizer de suas bravatas como torturador e
assassino.
De
que adianta, então, mexer no sistema de comunicação do país se o problema não
se esgota na manipulação nem no controle midiático? Simplismo? Auto-engano
recorrente?
Exatamente
por tudo o que foi dito antes: a complexidade do problema se deve a sua
multicausalidade, entre os quais o controle dos meios de comunicação por grupos
de dominação históricos. Estabelecer um marco regulatório que discipline
tamanhas organizações empresariais de comunicação é indispensável à construção
de um espaço público de produção crítica a um autoritarismo latente, histórico,
sempre à espreita do golpismo.
SRN
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