sábado, 26 de junho de 2010

A cristaleira do Correa

Tenho um velho amigo gago. Dessas figuras folclóricas, à espera de um registro. Popular e prestativo, da rua ao quarteirão logo ao bairro, praticamente.

Talvez eu seja o primeiro. E a oportunidade do registro não poderia ser mais oportuna.

O Correa, contratado pelo Flamengo, eu já conhecia, mas não como volante.

Contou esse meu amigo que, ruim agora, sua gagueira era bem pior quando pequeno. Pelo que entendi, pois nessas horas é mais fácil pra ele representar, tornar graficamente visível a cena: pega minha caneta nanquim, coloca no canto da boca, torce o nariz, pega um copo, enche d'água. Olha prum lado, pro outro e parece que o tanque é útil, nele derrama um pouco da água e volta trocando os pernas, sacudindo o corpo:

"Eeeeenn...enteeen...deu, Mámámá...Máxi...?"

Entendi, o cara era macumbeiro.

Ainda meio sonolento, o barulho na sala chegando até o quarto, mas já estava acostumado e sabia que naquele dia o pessoal da Fábrica Confiança, onde sua mãe trabalhava, vinha pro descarrego. Então, a baforada do charuto fora suficiente. O pai de santo, devidamente arriado, suponho (nessa parte, meu amigo dobra-se todo, ainda mais ininteligível) abre o porta do quarto, seguido pela sua mãe, e aproxima-se da cama. Faz o "pela cruz", bafora ali, bafora aqui:

"Tá carregado esse meu filho."

Essa parte é mais uma recriação, pois eu não entendia nada do que o meu amigo falava.

"Fiquei bom, nanana... hoora, Máma...ximo."

Aí tentou repetir o que começara a falar e nisso, em consideração, bateu quase 4 da manhã. Tentando encurtar a conversa:

"Maravilha, meu irmão, fica pra próxima."

"Tu naaauuumm qué sasaa...ber o resto?"

É o tal negócio:

"Tá tranquilo, vai lá."

O pai de santo também se chamava Correa e prestava serviços pra todo mundo na fábrica. Até na sala do pai do Braguinha, que fora diretor da Fábrica Confiança, o Correa entrava e, assim como quem não quer nada, abria a sua marafa e dava sua baforada.

Não cobrava nada, mas não fazia muita diferença. Corrrea era glutão e a garantia do "trabalho" era dada mediante o "caboclo comer e beber do bom e do melhor".

Em Vila Isabel, muito português, dono de açougue, fechou a semana graças à voracidade do caboclo do Correa.

Naquele dia, entretanto, Correa excedeu-se.

Certo, "meu camarada", como diria o 28, convenhamos que só quem conheça a gagueira desse meu amigo avalie do trabalho do caboclo, cansando e, provavelmente, levando à exaustão: Correia, após meu amigo emitir impecável, "três tigres tristes", sacudiu o corpo de uma tal maneira que a força que o caboclo fez pra subir acabou jogando-o pela janela, vindo a cair em cima dos vasos de antúrio e "comigo ninguém pode" que a Mãe desse meu amigo cultivava na porta da casa de vila.

Correa comeu e bebeu, novamente bebeu e comeu e, antes de sair, resolveu evocar o caboclo, pois a Mãe desse meu amigo caprichara e Correa, pelo jeito, queria deixar tudo certo pra poder voltar:

"Madame, mi si fio, só pra fechar..."

E saiu pela casa, baforando. Caboclo inglês, meticuloso, resolveu passar em baixo de uma cristaleira que ficava a um canto da sala.

"Só pra confirmar..."

Correa acabou entalado e tiveram que chamar o bombeiro.

Gosto muito desse meu amigo, mas já estava muito tarde. Não soube se o caboclo chegou a ser resgatado junto com o Correa.

SRN


Nenhum comentário:

Postar um comentário