domingo, 13 de junho de 2010

Esquina

Por 28

28 - Não me leve a mal, Tadeu, mas tenho de tirar o pé do chinelo e esticar a perna na cadeira. Mas, diz aí, se o uísque, como falava o Vinícius, é o cachorro engarrafado, no teu caso, são as palavras o melhor exemplo de amigo do homem. Deve ter algum livro pronto na gaveta, não tem não?

Tadeu - Espio a minha estante e vejo que há por ali livros de Philip Roth e Gonçalo M. Tavares que ainda não li. Tudo isso pra te dizer que jamais escreveria um livro e isso não guarda qualquer relação com falsa modéstia ou algo que o valha. É puro egoísmo. Ganho mais lendo do que escrevendo. Já disseram tudo e tudo o que me resta é tentar assimilar algo. Há alguns dias leitura de Viagem no scriptorium de Paul Auster deu reforço à essa certeza. Millôr disse que quanto mais lemos, mais aumenta nossa ignorância. Diria que também ficamos menos convictos e que tudo isso é muito bom. Nada saber e muito duvidar faz muito bem a isso que muitos por aí chamam espírito. Repito, não há nisso qualquer resquício de modéstia. É só egoísmo mesmo.
Ademais o que escrevo é coisa de pouco fôlego, voo curto, passos tímidos. Só trato do que se me dá aos olhos. Sou pouco imaginativo. Se não vejo, calo. Em literatura sou como aquela velha discussão que se tratava no surgimento da arte abstrata. Se é pra retratar a realidade, bastaria a fotografia. Pois o que escrevo são fotos e muito mal tiradas, por sinal.

28 -Em 70, no tricampeonato, eu ainda ia fazer 8 anos. Muito moleque pra ver a arte do futebol como ela merece. Já em 74 foi diferente. Te digo mais: revolução mesmo, de fato, se quisermos ser rigorosos na acepção, quem fez - e nunca foi igualada - foi a seleção da Holanda, em 74, com aquele carrossel sensacional. Chamaram de "Laranja mecânica", em virtude do filme do Kubrick. Você, que é um cinéfilo, traça aí um paralelo rápido entre o filme e aqulea seleção, o clima da época, etc.

Tadeu - A associação entre as duas laranjas ficou por conta da cor da camisa da seleção holandesa. Eram, contudo, duas obras-primas. O filme por desmascarar o cinismo de uma sociedade que inutilmente se arvora na cura dos males por ela mesmo provocados. A doença prossegue incólume, mas o corpo social dá o seu aval e assim doente, doença e sociedade patológica prosseguem. O mal está por toda a parte e até mesmo o discurso que se ocupa da patologia é também ele profundamente doente. E o carrossel por mostrar que um número posto às costas é só um número e que bons conjuntos são indivisíveis. Aqueles deslocamentos em bloco ainda é o que de melhor o futebol produziu quando o assunto é organização tática. Eis ali um perfeito exemplo de bagunça organizada. Às vésperas daquele Brasil x Holanda, Zagallo dizia que aquilo tudo não passava de um fogo de palha e que mostraríamos a eles como se deveria jogar futebol. 2 x 0 foi pouco. Merecíamos mais e todos sabem disso. Mais tarde veio o "vocês vão ter que me engolir" mas aí já é outra história.

28 -Eu vi o Geraldo. mas, confesso que o cara, às vezes, me irritava. Era um dos que na arquibancada pedia o Tadeu, teu xará, que entrava sempre no segundo tempo. Repeti ai aquela literatura de escocês rótulo preto sobre o cara. Um resumo, o que der.

Tadeu - Geraldo, eu já disse, me abrira as portas do paraíso. A dívida era impagável e não me dava o direito à decepção. Mas já te contei que mesmo naquele jogo no campinho perto de casa onde ficava as tardes a matar aulas, todos queriam ganhar, ainda que fosse de meio a zero. Geraldo estava em outra; não gostava de fazer gol e às vezes saía do campo, parecia ir à outras paragens. Aprendi, porém, que nem sempre é o gol a moeda que paga o ingresso. Andar por sobre a bola é o desafio-mor à racionalidade e isso não tem preço. Tadeu Ricci era a objetividade, mas a objetividade daqueles tempos não era tão feia quanto à de hoje.

28 - Isso aqui tá parecendo o canal livre ou, o que é pior, entrevista feita pelo Ziraldo. Estou só aporrinhando. Fala aí o que quiser, pergunta aí. Ou fechamos a conta?

Tadeu – Ainda pra saideira. Diga lá: como é essa coisa de resumir ideias inteiras em dois ou três traços. Desenhar é não ser prolixo, né não? Falta-me a capacidade de traçar uma linha reta e esse dom de dar ao pensamento uma liberdade que a palavra muitas vezes parece limitar. O que era aquela geometria do Kandinsky? Há também um representante do cubismo tardio chamado Juan Gris que é o seguinte. Penso às vezes que Picasso teve para a pintura, sobretudo para o movimento que encabeçou, o mesmo efeito que Pelé teve para alguns jogadores de sua geração, ou seja, não permitiu que víssemos coisas bem essenciais. E mais: Modigliani seria um artista menor se tivesse sofrido menos? Sei que essa discussão é velha e, pior, infindável. Mas talvez por isso mesmo tão boa. O que você acha?

28 – O que acho, meu camarada, é que agora são os dois pés, circulação é uma tristeza. Niemeyer vai na veia. O único brasileiro que merece panegírico, conforme o Máximo. Foram entrevistá-lo, aquela clima todo, a longevidade, monstro sagrado, o cacete, mandam essa: Mestre, qual o segredo dessa bela longevidade produtiva? E ele, de bate pronto: "segredo porra nenhuma. A idade é uma merda". No meu caso, meu camarada, em que falta o talento, não sobra nem o botequim, por causa do diabetes, ficando só o ranzinza. Ao menos o seguinte, já que falei do Niemeyer: "otimismo é desculpa pra não fazer nada". Isso não é perfeito nesses tempos de ufanismo de copa do mundo? Mas, pra não deixar de dizer alguma coisa, além do que voc~e já disse, resumo tudo numa frase de Braque:

“Diziam-me: basta botar sombra. Eu respondia: nada disso, importante é o que se pensa a respeito.”

Agora vou nessa, meu camarada. Ve aí quanto deu.

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