domingo, 16 de maio de 2010

"Literatura e Futebol"


Quase ninguém merece panegírico. No Brasil, vivo, Oscar Niemeyer; morto, Barbosa Lima Sobrinho, e é certo: Prestes, pela pureza, pela capacidade de trocar as vantagens pessoais, tanto que trocou o Brasil, que lhe veio de bandeja, em 30, pela fidelidade às convicções pessoais. Isso não é pouco: quantos de nós não nos mantemos puros apenas por falta de oportunidade?

Mas, no espaço em que é possível para um homem do povo, o nível correto de urbanidade deve sempre ser sacrificado em favor do senso de humor – este sim, irresistível.

Ligo a televisão, pulo para os canais institucionais, Senado, Câmara, Alerj, na esperança de um conduto para a demanda social do “movimento dos sem mídia”.

Encontro um convênio entre a tv Alerj e a Academia Brasileira de letras. A ABL e a bola, ou “Literatura e Futebol”.

Nunca soube que Marcos Villaça, presidente da ABL, tivesse qualquer ligação com o futebol, a não ser pela chefia da delegação da CBF na Copa América da Venezuela.

A conexão lexical entre a espontaneidade popular e a disciplina acadêmica, levantada pelo presidente da Academia, teria sido um lugar mais conveniente, um espaço mais confortável a um titular da Casa que, para mim, tem tanto significado, captura a síntese nacional a um ponto, até o ponto de um dia a ela vir me candidatar com um argumento mais do que razoável: “depois de um operário na Presidência da República, um camelô-desenhista para a ABL”.

O frango, que o acadêmico Marcus Villaça esqueceu-se de citar, é certamente muito mais saboroso e revelaria muito de sua intimidade com o futebol do que a lista de expressões da bola que enumerou. Preferiria-o à entronização de João Havelange como um dos maiores brasileiros do século passado. Por quê? Apenas pelo poder de negociar com um ramo da cultura popular, que progressivamente vem perdendo sua função esportiva e cada vez transformando-se mais numa modalidade da indústria cultural?

E aqui desculpe-me a pretensão:

“Não passando de negócio, basta como ideologia.”

A frase tem pedigree, poderia estar presente à mesa, ao lado de Villaça, de Havelange, de Ricardo Teixeira. Foi dita por Adorno, da Escola de Frankfurt. Indústria cultural, segundo Adorno, significa a padronização dos bens culturais e implica economia de escala e mercado ampliado, internacionalizado, unívoco.

A conexão óbvia com o futebol impõe-se: como padronizar características tão distintas?

É certo que a habilidade do brasileiro teria de sucumbir ao pragmatismo do europeu. A consequência não é nem a mediocridade, porque, neste caso, a média, se exige o rebaixamento da habilidade brasileira, também exige, como contrapartida, a elevação do nível da habilidade do europeu - o que tem se provado difícil. O que houve, sobretudo pela contribuição de João Havelange, a partir de 74, foi um rebaixamento na qualidade do futebol produzido pela indústria mundial da bola.

Avanço sobre a hipótese de que a “Era Dunga”, expressão desse futebol como bem de indústria cultural em substituição progressiva de um ramo da cultura popular, representa um futebol de resultado, um futebol de mercado, que exige maior segurança e é mais favorável à manutenção do ranking, a fim de que se mantenha limpo o fluxo dos contratos que a CBF estabelece.

Critérios de mercado, aplicados ao que se chama hoje, pernosticamente, de “mundo corporativo”, têm sido usados por Dunga. Não é preciso nem recorrer ao futebol profissional. Basta que qualquer um se lembre de suas peladas de infância. As minhas, na Senador Soares,ou no futebol de salão no Maxwell, aqui em Vila Isabel (“Gigante”, Zé Ricardo, Flávio, Antônio Máximo e Joãozinho. Com exceção do primeiro, cujo apelido se deve ao fato de, aos 12, 13 anos já ser muito alto, o resto não passa de um bando de desconhecidos. “Gigante era o apelido do Zé Carlos, nosso vizinho, goleiro do Flamengo, tetracampeão em 87, reserva do Tafarel na copa de 90, e que, infelizmente, morreu de câncer, no ano passado, na Beneficência Portuguesa, ali na subida do Alto). Éramos mais ou menos uns 20. Quantos desses garotos eram, de fato, “uma verdadeira família”? O que nos reunia e socializava era o gosto comum pela bola.

Aquele time do Flamengo de 81, campeão de tudo, vivia tendo problemas com o Tita, que queria, porque queria, o lugar do Zico. Eu me lembro bem da expressão “jogar pra arquibancada”. Quando o Zico não jogava ( o que era raro), Tita aproveitava pra “arrebentar”, “jogar pra arquibancada” cheia do lado esquerdo da tribuna de honra.

Outro caso notório foi o toyota que o Nunes ganhou pelos gols na final em Tóquio e resolveu não cumprir o que o elenco havia combinado: receber o equivalente em dólares e ratear entre todos. Cismou de trazê-lo para o brasil. Pagou o diabo, numa época em que a importação era praticamente inviável.

O que eu quero dizer é que esse papo de “grupo fechado”, monolítico, só existe como uma adaptação ao futebol de critérios empresariais em que não se pode correr o menor risco, sob pena de prejuízos significativos. A indústria da bola é o futebol como negócio. À função esportiva, o prazer dos títulos, o gesto lúdico com a bola, inconsequente, até mesmo irresponsável (como era o caso do Uri Geller, ponta esquerda do Flamengo, no final dos anos 70 e que esquecia-se do jogo e discutia com o torcedor da geral), impõe-se uma estrutura de produção de jogadores, voltada para atender o mercado externo.

Na verdade, retomamos no futebol a condição de Brasil-Colônia.

Eis aí um bom tema, para o próximo seminário da ABL:


"Havelange e o futebol de exportação."


SRN

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